'Pantanal': Tanto em 1990 quanto agora, novela estreia num Brasil arrasado
Batendo 44 pontos de audiência, sucesso da TV Manchete conquistou o público por fugir do cotidiano urbano em meio ao confisco do governo Collor, contexto que poderia se repetir na crise da atualidade
O Brasil havia acabado de conhecer o Plano Collor I, marcado pelo confisco das poupanças para controle da inflação, quando as imagens oníricas que mesclavam onças, cobras e corpos femininos entraram no ar diariamente na TV Manchete. Numa realidade dura, a abertura de "Pantanal", escrita por Benedito Ruy Barbosa, era um convite ao mergulho nos fascínios e mistérios de um Brasil profundo e pouco explorado pelas telenovelas, produto que tinha no meio urbano seu principal palco.
O retorno da inflação, a alta dos combustíveis e até a movimentação pela legalização do garimpo em terras indígenas estão em pauta na chegada do remake de "Pantanal", que estreia dia 28 de março como o grande lançamento da TV Globo em 2022, com texto de Bruno Luperi, neto de Benedito Ruy Barbosa, e direção artística de Rogério Gomes. Novamente, soa como uma fuga - mesmo com suas contradições - às raízes do Brasil.
Dividida em duas fases, o clássico acompanha a saga da família Leôncio no pantanal de Mato Grosso. Joventino chega às terras acompanhado do primogênito José. Ele desaparece após sair sozinho para caçar bois e o filho promete, então, caçar todos os dias na esperança de encontrar seu pai, tornando-se assim um dos principais criadores de gado da região. A segunda fase marca a chegada de Jove, filho de José que foi criado no Rio de Janeiro.
O argumento do folhetim retorna com elenco de peso, incluindo Marcos Palmeira (José Leôncio), Juliana Paes (Maria Marruá), Dira Paes (Filó), Marcos Palmeira e os pernambucanos Irandhir Santos (Joventino), Jesuíta Barbosa (Jove) e Renato Góes (José Leôncio). A icônica Juma, mulher que se transformava em onça, será vivida pela estreante Alanis Guillen.
O curioso é que "Pantanal" passou anos engavetada na TV Globo, chegando a entrar em pré-produção em 1984, o que foi inviabilizado pela época de chuvas na região. Em 1990, a Manchete contratou Ruy Barbosa, colocando a novela no ar em março de 1990. No começo, a atração registrou 14 pontos, mesma média da novela anterior, mas cresceu aos poucos, chegando ao auge de 44, batendo na própria Globo.
Um novo escapismo
A jornalista Beatriz Becker, co-autora de "Pantanal: a Reinvenção da Telenovela", aponta que o sucesso do produto talvez seja explicado justamente por ser um contraponto aos ideais que a Globo vendia em suas telenovelas na época: modernidade, mundo urbano, felicidade através do consumo. Tudo isso foi tirado do horizonte com o confisco do Plano Collor.
"Pantanal parecia prometer a devolução dos sonhos que Collor confiscou e as fantasias de um dia poder viver no paraíso, num lugar mágico, bonito, sensual, livre de toda a turbulência do mundo urbano, onde os homens poderiam existir em comunhão com a natureza. Desse modo, a telenovela resgatou algo da identidade rural da sociedade brasileira, negligenciada e silenciada durante o processo de modernização do país", registrou em artigo homônimo do livro, escrito com Arlindo Machado.
"O tempo da narrativa, o som e a luz do Pantanal e até mesmo lendas e crenças indígenas e regionais foram trabalhadas com maestria por uma talentosa equipe sob direção de Jayme Monjardim. Os telespectadores despertaram para a importância do equilíbrio ecológico e da biodiversidade e vislumbraram outros sentidos para as suas próprias vidas, oprimidas naquele momento pela perda do sonho da casa própria e de bens materiais desejados e guardados em seus próprios recursos", diz Beatriz, em entrevista ao JC.
Apesar de envolver um marco histórico da teledramaturgia, um remake de Pantanal no horário nobre em 2022 pode ser considerado ousado em diversos âmbitos. Em primeiro lugar, é raro hoje, como era em 1990, uma novela rural no horário nobre. A última com esse viés foi “Velho Chico” (2016), do próprio Ruy Barbosa com Edmara Barbosa e Bruno Luperi, que ganhou elogios da crítica, mas não foi nenhum fenômeno de audiência.
A versão original também é lembrada por um desenvolvimento mais lento, caminho pouco viável na ficção seriada atual, já que vivemos num mundo da economia da atenção. Por outro lado, essa nova versão é um mar de possibilidades para inovações técnicas, visuais e de direção de arte, visto que a teledramaturgia já tem passado por transformações nesses âmbitos com a chegada da concorrência internacional pelo streaming.
Para a doutoranda em comunicação Joana Darc de Nantes Silva, que pesquisa sobre ficções seriadas na TV, o remake nesse momento que vivemos pode ser uma repetição do escapismo. "Os brasileiros viviam um momento muito difícil na primeira exibição, então trazer uma novela completamente diferente do que se tinha até então, com um ritmo diferente, foi muito impactante", comenta.
"Até aquele momento, as novelas tinham muita ação e reviravoltas para explorar emoções. A Manchete trouxe uma novela com um ritmo mais lento e contemplativo, que conservava com a linguagem do cinema. Talvez hoje vivamos novamente essa questão da fuga que a TV permite, trazendo uma linguagem diferente."
Também existe, é claro, o apelo nostálgico para quem viveu a primeira exibição. "Pantanal' conquistou uma geração de pessoas, sobretudo pelo momento complexo que se vivia. É algo parecido com o que ocorre com reprises e com essa retomada de novelas antigas pelo streaming." Sobre as novas gerações que talvez não tenham vínculo com o título ou com a TV aberta, ela ressalta que hoje o Grupo Globo possui outras alternativas para esse público, como os conteúdo originais do Globoplay.
A questão ambiental
Outra controvérsia do remake é o contraste entre a exaltação do pantanal numa novela com a realidade do bioma. Em 2020, um conjunto de pesquisadores publicaram um artigo que revelou que o pantanal sofreu a maior tragédia de sua história. Incêndios destruíram cerca de 4 milhões de hectares, sendo praticamente 26% do bioma - uma área maior que a Bélgica.
Ainda não se sabe se o remake terá um aspecto pendente pro eco ativismo. Contudo, Joana Darc de Nantes Silva aponta que o discurso do meio ambiente também estava em ascensão em 1990. "Esse foi o ano da Conferência Ministerial sobre o Meio Ambiente, das Nações Unidas. Já era interessante trazer essa ambientação", diz. No Brasil, ainda havia o contexto da redemocratização recente, que deu mais espaço a esse tipo de pauta.
"'Pantanal' trazia uma observação da natureza que mostrava a importância do meio ambiente, da preservação, mesmo que não fosse explicitamente. Não havia um tom de merchandising social, onde se ensinaria sobre ecologia durante as cenas. Hoje vivemos as queimadas, o descaso com o meio ambiente. É uma pauta novamente interessante e importante, mas acho que a Globo não trará um tom de ativismo", opina a pesquisadora.
Já Beatriz Becker afirma que o remake pode contribuir para fomentar outras leituras da experiência cotidiana e o debate social a favor do desenvolvimento sustentado e da equidade social para um projeto de futuro possível para o Brasil e o mundo. "A indústria cultural intervém na agenda política e econômica, por meio de sua mediação, imbricada em interesses políticos e financeiros de grupos dominantes. Mas Pantanal revela que há produtos da mídia que podem contribuir para ampliar a percepção da realidade social e transformá-la."