'Governo nenhum pode censurar o cinema', diz Lázaro Ramos em pré-estreia lotada no Recife
"Medida Provisória", estreia de Lázaro Ramos como diretor, encheu o Cinema São Luiz: 'É um filme que fala da luta anti-racista de forma popular. Queremos conseguir levar essas pautas para o dia a dia das pessoas'
O Cinema São Luiz, no Centro do Recife, recebeu o seu maior evento desde a reabertura, em fevereiro deste ano, com a pré-estreia de "Medida Provisória", primeiro longa-metragem dirigido por Lázaro Ramos, nesta segunda-feira (4). Além do diretor estreante, estava presente o protagonista anglo-brasileiro Alfred Enoch, conhecido por personagens como Dino Thomas (saga "Harry Potter") e Wes Gibbins (seriado "How to Get Away with Murder"). A produção estreia nos cinemas em 14 de abril.
Baseado na peça teatral "Namíbia, Não!", do baiano Aldri Anunciação, "Medida Provisória" mostra um Brasil distópico em que, com argumento de justiça social, uma campanha do governo obriga negros a imigrarem para países da África. O longa ainda conta com nomes como Taís Araújo, Seu Jorge, Adriana Esteves e Renata Sorrah no elenco de peso.
Justamente pelo enredo (e pelo tom militante da direção), a noite no Recife foi marcada por posicionamentos políticos. "A história desse filme começou em 2011, mas a base da história é de 2015. Na época, estávamos pensando em coisas que não gostaríamos que acontecessem no Brasil. Parte das coisas que ocorrem neste filme já aconteceram", disse Lázaro Ramos, em fala ao público da pré-estreia.
"Esse filme deveria ter estreado em 2020. Não foi possível. Primeiro pela pandemia, depois por conta da Ancine. Mas estou feliz de estreá-lo agora, pois estamos num ano em que faremos um novo pacto", continuou o ator. A sessão foi marcada pelo furor da plateia, com constantes gritos e aplausos.
'Não há governo nenhum que possa censurar o cinema', diz Lázaro Ramos
Em dezembro de 2021, os produtores de "Medida Provisória" emitiram uma nota para denunciar que a Agência Nacional do Cinema (Ancine) estava travando a chegada do filme às salas comerciais. Antes da sessão, em conversa ao JC, Lázaro comentou mais sobre os problemas com a instituição.
"Estávamos dependendo de uma assinatura. Demorou mais de um ano para que essa assinatura saísse. Ela veio numa sexta-feira, às 18h30, depois da imprensa ter trazido o assunto de censura. Sabemos que a censura também se faz pela burocracia", explicou.
"O mais importante nessa história foi que o não silenciamento da questão foi que fez o filme ser liberado. Hoje estamos o trazendo aqui, e as pessoas que vão decidir em vê-lo ou não", disse. "Espero que as pessoas debatam os assuntos abordados. É um filme que fala da luta antirracista de forma popular, é um filme de entretenimento. Queremos conseguir levar essas pautas para o dia a dia das pessoas."
Contrariando algumas expectativas, o "Medida Provisória" é recheado de cenas de humor. "Essa abordagem partiu de uma sensação que tenho de que, muitas vezes, quando vamos contar histórias com negros, começamos a pensar em coisas negativas. O humor entra para que todos possam se identificar com os personagens, com nossas rotinas, desejos. E que, quando a tragédia chegasse, fosse uma rasteira. Não que essa fosse a posição de que as pessoas merecem viver."
O longa-metragem também não tem cenas com sangue, apesar de ter mortes. "Não queria ver uma arma na mão de um preto como se isso fizesse parte do seu instinto, como se fosse natural", disse. "Não queria que fosse utópico trocar uma arma por um livro. Já vivemos uma distopia. Acho que o sonho não está dando mais conta desse tempo que estamos vivendo, precisamos ir além e sonhar o que parece ser impossível".
Para além do episódio com a Ancine, o artista ainda ressaltou que o cinema brasileiro "merece ser tratado com respeito". "É uma área estratégica, de qualidade e que emprega muitas famílias que vivem desse encantamento. É onde está o nosso espelho. Não há governo nenhum que possa censurar o cinema. Muito pelo contrário, precisamos sempre incentivá-lo e estimulá-lo."
'Esse país também é meu', diz Alfred Enoch
No filme, Alfred Enoch vive o advogado Antônio, que elabora liminares para tentar reverter medidas provisórias negativas para a população negra no país. "O racismo não é uma coisa que só existe no Brasil, então acredito que, por isso, o filme fez sucesso lá fora. Agora, com a chegada no Brasil, é o momento mais importante. O filme aborda assuntos brasileiros de forma bem direta. O Lázaro fez um trabalho lindo", disse, ao JC.
"Lá fora também estamos começando a falar sobre essas coisas. Antigamente nós atores não éramos acostumados a dialogar sobre assuntos difíceis. Agora, com essa oportunidade, com atores e um bom cineasta, queríamos abrir uma conversa sobre isso. O Lázaro fez isso de um jeito muito delicado, muito elegante", continuou.
Enoch nasceu e foi criado em Londres, mas tem mãe brasileiro. Chegou a morar em Salvador durante um ano. "Tenho muito carinho pelo Brasil. Uma prima minha está aqui nesta sessão (risos). Quero estrear esse trabalho em português para a minha família. A minha mãe ainda não assistiu, mas verá quarta-feira ao lado de tios, tias, primos e primas. Esse é um trabalho muito importante pra mim, é muito marcante poder dividir isso com minha família. Digo como o Antônio diz no filme: 'esse país é meu também'."
Lázaro defende regulamentação do streaming no Brasil
Já no debate após a sessão, com presença do psicanalista Érico Andrade, Lázaro Ramos ressaltou que "Medida Provisória" teve a equipe mais negra da história do cinema nacional. Apesar da conquista, o diretor opinou que o mercado audiovisual está "atrasado", no aspecto da diversidade.
Para que mudanças sejam possíveis, ele apontou a necessidade da mudança da gestão do governo federal e também defendeu a regulamentação do streaming. "É uma área sem regulamentação. Estão produzindo, mas ainda existe muita coisa a ser negociada. Essa é uma luta que vai demorar um pouco".
Ainda no tema da representatividade, ele comentou o motivo de sua saída da Globo. Atualmente, possui contrato com a Amazon Prime, que vem investindo no mercado brasileiro. "Troquei a Globo pela Amazon por estar um pouco cansado de pedir, como se eu fosse um pedinte, como se eu tivesse de implorar por uma coisa que é poderosa, que são os nossos profissionais, a nossa história".
"Eu mudei justamente por isso. Acho que o que fazemos é muito válido. Pena que o mercado está atrasado, mas na hora que eles enxergam a gente, podemos nos juntar e fazer um ‘Medida Provisória’. Isso para mim é muito importante hoje em dia. Em tudo o que eu fizer, a capacidade e a qualidade dessa gente toda que tem no nosso país será vista."