A existência de Miró jamais se restringiu ao seu corpo físico e deslocado/deslocando-se. Portanto, a morte do poeta aos 61 anos, no último dia de julho deste ano, não há de sepultá-lo e fim. Decerto que toda gente que realiza, em vida, continua naquilo que fez e deixou — ou o que fez e deixou continua na gente. Ainda mais os artistas. Ainda mais aqueles que fundaram sentidos, inauguraram olhares. Como Miró.
A continuidade de Miró estará respirando logo, logo, no próximo espetáculo do Magiluth. O grupo pernambucano de teatro ensaia uma montagem impregnada do poeta e de sua poesia-crônica.
A ideia de 'Miró', como deve ser intitulado o espetáculo, nasceu há seis anos e flertava com a possibilidade de ter o artista fisicamente — na plateia ou mesmo no palco. Não houve tempo, mas como uma escrita em linhas não muito retinhas, a peça parece chegar no momento exato de dar corpo à existência dele.
'Miró' estreará primeiro em São Paulo, em novembro, num palco ainda a ser anunciado. Viajará para a capital paulista para, certamente, encontrar olhos e ouvidos ainda intocados pela atmosfera do poeta. "O que a gente puder fazer para que a palavra dele continue sendo ecoada, a gente vai fazer", diz, enfático, Mário Sergio Cabral, que com Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres e Pedro Wagner formam o Magiluth.
Em cena estarão Bruno, Erivaldo e Giordano mais a atriz convidada Anna Carolina Nogueira. O elenco, há um ano, fez um ensaio de 'Miró', no Itaú Cultural, para um grupo de espectadores de São Paulo, do Rio de Janeiro e do Acre, entre outras origens, mas as pessoas não identificavam o poeta.
"Todo mundo ficou encantado — porque ele é gigante, enorme, e chega sozinho nos cantos —, mas tem um monte de gente que não o conhece", relata Mário Sergio.
Com direção de Grace Passô
A montagem que fará semeadura da palavra de Miró é a primeira parceria do Magiluth com a atriz, diretora e dramaturga Grace Passô, que assina a direção do espetáculo. O Magiluth e Grace são nomes que, na última década, renovaram o fogo do teatro brasileiro contemporâneo.
Eles sempre se acompanharam em seus trabalhos, até que, em 2016, quando o Magiluth submeteu, pela primeira vez, o projeto desta peça ao Funcultura, o grupo chegou ao nome de Grace Passô para a direção. O projeto foi reprovado, frustração que se repetiu em 2017, até conseguir passar em 2018. Por burocracias e pandemia, somente agora será realizado. "É um encontro com seis anos de atraso."
Miró acompanhou esse trajeto pelos editais: "A gente teve uma relação com ele durante todo esse tempo e cogitou que ele fizesse parte dessa peça. Em algum momento, a gente pensou em ter Miró conosco no palco".
Sem a possibilidade da presença física dele, o Magiluth e Grace Passô têm buscado o poeta em estímulos: leem textos, assistem a vídeos, escutam músicas etc, nos ensaios onde, coletivamente, constroem a dramaturgia do espetáculo. Participam do processo, ainda, a atriz e coreógrafa Kenia Dias, da Companhia Brasileira de Teatro, como assistente de direção e preparadora corporal, e o músico Miguel Mendes, na trilha sonora.
"Eu não sou marginal, eu sou poeta"
"A gente nunca teve a intenção de performar Miró. Miró é Miró. Nas trocas com ele, a gente queria dialogar com sua crônica da cidade. Olhar para a cidade é uma característica do Magiluth, e Miró é um poeta que pensa muito no lugar em que ele está. Ele se dizia um cronista: 'eu conto as coisas que acontecem na cidade'", explica Mário Sergio.
Do convívio com o poeta, o grupo se apossa de detalhes, como a relação que ele tinha com a música ("Ele é muito manguebeat, muito Fernando Mendes, muito Roberto Carlos, apaixonado por Djavan). Nas conversas com o professor, escritor e editor Wellington de Melo, que prepara uma biografia a ser lançada pela Cepe Editora, os atores descobriram que Miró da Muribeca quis se resumir a Miró. "Talvez estivesse o localizando demais, enquanto ele é universal", reflete Mário Sergio.
No Recife, 'Miró' ainda não tem data para estrear, mas se sabe que será no Teatro de Santa Isabel. Desde a primeira escrita do projeto, o palco estava determinado. "A gente quer contar essa história no palco oficial da cidade. Miró sempre combateu essa história de poeta marginal, ele dizia 'eu não sou marginal, eu sou poeta'. Ele se impõe e se colocará no palco do Santa Isabel."
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