ARTES VISUAIS

Exposição "Necrobrasiliana" interfere nas imagens coloniais que se perpetuam no Brasil

Doze artistas expõem 26 trabalhos na Fundação Joaquim Nabuco, com curadoria de Moacir dos Anjos

Romero Rafael
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Romero Rafael
Publicado em 14/09/2022 às 22:16 | Atualizado em 15/09/2022 às 17:37
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RELEITURA Sobre obra de Debret, Sentem para Jantar, pintura de Gê Viana, põe pretos à mesa - FOTO: DIVULGAÇÃO
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Anastácia está livre na obra "Monumento à Voz de Anastácia", que o artista carioca Yhuri Cruz criou numa releitura da litografia "Castigo de Escravos" (1817), do francês Jacques Arago. Na nova imagem não há mais mordaça. O colar de tortura foi convertido em adorno. Há flores enfeitando. Se o Vaticano não acata os pedidos para beatificação da mulher preta representada na condenação que recebeu por ter resistido à violência sexual de um homem branco, os santinhos já a santificarão. Eles serão distribuídos na exposição "Necrobrasiliana", que abre nesta quinta-feira (15), às 19h, na Galeria Vicente do Rego Monteiro, no campus Derby da Fundaj.

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Obra Monumento à Voz de Anastácia, de Yhuri Cruz - DIVULGAÇÃO

A releitura de Anastácia é uma das 26 obras que compõem a mostra disposta a reler, recriar, hackear, imagens do Brasil colonial até hoje consolidadas na nossa memória e reproduzidas.

"É uma exposição que reúne uma geração de artistas jovens brasileiros interessados numa visão crítica de apontar as violências e os danos do racismo que estão na fundação do Brasil e repercutem até hoje — e que eu costumo chamar de violência colonial contemporânea, que é a atualização da violência no Brasil de agora", conversa Moacir dos Anjos, curador da mostra.

Doze artistas assinam os trabalhos de "Necrobrasiliana", proposta artística que nasceu dentro do projeto de exposições Política da Arte, que o curador coordena na Fundação Joaquim Nabuco, de onde é pesquisador. Pensada em 2019, a mostra foi arquivada por causa da pandemia e só agora pode ser montada — depois de ter estreado no Museu Paranaense (Mupa), entre junho e agosto, instituição com que a Fundaj mantém acordo de cooperação.

Embora deslocada do tempo em que foi pensada, Moacir dos Anjos entende que, agora, ela "ganhou outros sentidos em função dos 200 anos da independência do Brasil, uma vez que a memória que a gente tem daquele período é formada por imagens de Debret, Rugendas e fotógrafos de um pouco depois".

"Eles quem deram essas imagens do Brasil colônia repetidas em calendários, livros de história, novelas. As imagens do Brasil são as imagens desses artistas viajantes daquele tempo."

O que os artistas de agora fazem é desmantelar, rasurar, e mesmo ignorar, essa iconografia brasiliana, como foi nomeado o acervo documental e visual criado entre os séculos 16 e 19. "Eles refazem a memória daquele período mostrando as violências contidas nas imagens, as sugeridas e as explicitas."

Fora a obra que dá liberdade a Anastácia, há outros trabalhos conduzidos por uma crítica explícita, como a série "Atualizações Traumáticas de Debret", da artista maranhense Gê Viana (que, aliás, apresentará a performance "Angu", na abertura). Ela apresenta títulos como "Sentem para Jantar". À mesa, recriação de tela do francês que esteve no Rio de Janeiro no século 19, estão sentados somente negros.

"Quando ela refaz as imagens de Debret com imagens de felicidade, bem-estar, conforto, para aqueles homens negros representados ali, faz imaginar o que poderia ter sido e não foi", comenta Moacir. "A historiadora Saidiya Hartman fala muito da necessidade de explorar o modo do subjuntivo: o que poderia ter sido. Não é apenas o que foi, mas reimaginar a partir de outras relações e sociabilidades. Nao é simplesmente fazer uma denúncia, mas se valer hoje do que não foi possível no passado e recriar essas possibilidades."

(Em 1981, na Missa dos Quilombos, celebrada no Centro do Recife como pedido de desculpas ao povo preto pelo clero progressista da Igreja Católica no Brasil, o bispo dom José Maria Pires, negro, reimaginou a história em sua homilia: "Houvesse a igreja da época marcado presença mais nas senzalas do que na casa-grande, mais nos quilombos do que nas cortes, outros teriam sido os rumos da história do Brasil desde os seus primórdios, outra teria sido a contribuição do negro ao nosso desenvolvimento".)

Outras narrativas

Nem tudo é explícito ou relido ou reimaginado em "Necrobrasiliana". Há entre as obras um curta do cineasta Zózimo Bulbul (1937-2013), "Alma no Olho", em que ele encena a situação do homem negro desde o começo da história do Brasil até o início do século 20.

As fotografias de Ana Lira, única pernambucana entre os doze artistas da mostra, vão numa direção de criar outra narrativa, com registros da vida de uma comunidade que é como um aquilombamento: a Várzea, onde sua família vive há mais de 40 anos, tendo integrado a organização do Movimento Cultural da Várzea. "Questões políticas, culturais e sociais são articuladas entre aquelas pessoas — a maior parte de origem negra, mestiça, pobre, população cujos antepassados foram explorados e escravizados", comenta Moacir dos Anjos.

"Ana Lira cria quase uma 'contrabrasiliana'. Ela produz uma narrativa contrária e possível, que não de sofrimento, dor e subordinação, mas de solidariedade, conforto e criatividade."

Além de Ana Lira, Zózimo Bulbul, Gê Viana e Yhuri Cruz, "Necrobrasiliana" apresenta trabalhos de Dalton Paula, Denilson Baniwa, Jaime Lauriano, Rosana Paulino, Rosângela Rennó, Sidney Amaral, Thiago Martins de Melo e Tiago Sant’Anna.

A maioria deles, negra e indígena, por direito e necessidade à possibilidade de outras histórias.

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