Cineasta Marcelo Gomes revela a busca universal por pertencimento em 'Relato de um Certo Oriente'
Longa narra a saga de imigrantes libaneses na vastidão amazônica após a Segunda Guerra: 'Podemos viver de forma pacífica', diz diretor
O cineasta pernambucano Marcelo Gomes construiu sua filmografia explorando a alteridade — as relações de contraste e encontro entre diferentes realidades. Esse traço já se destacava em "Cinema, Aspirinas e Urubus" (2005), onde um alemão fugindo da guerra cruza os caminhos de um sertanejo que tenta escapar da seca.
Essa mesma sensibilidade agora atravessa "Relato de um Certo Oriente", sua mais recente obra, baseada no romance de Milton Hatoum, vencedor do Jabuti em 1990. O filme narra a saga de imigrantes libaneses no Brasil após a Segunda Guerra Mundial, com um enfoque singular: o encontro entre esses estrangeiros e a vastidão amazônica.
Com uma estética em preto e branco assinada pelo diretor de fotografia Pierre de Kerchove, o longa explora preconceito, paixão e memória. Essa escolha visual não é meramente técnica; para Gomes, ela carrega um simbolismo mais profundo:
"Decidimos filmar em preto e branco para trazer uma aura de mistério ao filme e à Floresta Amazônica, retratando aquela imensidão verde em tons de cinza. A fotografia em preto e branco é objeto que evoca memórias de dias melhores, desperta esperança e oferece uma possibilidade de cura para as feridas do passado”, afirma o diretor em entrevista ao JC.
Representação autêntica
No elenco principal, Gomes escalou Wafa’a Celine Halawi, Charbel Kamel e Zakaria Kaakour - atores libaneses - para assegurar um retrato mais genuíno das vivências migrantes.
"O estrangeiro, ao chegar a um lugar, traz um olhar fresco, livre de conceitos ou preconceitos sobre aquele espaço. Ele enxerga de forma completamente diferente de quem já vive ali", reflete o cineasta.
Essa perspectiva externa dialoga com a formação multicultural do Brasil: "Nosso país foi construído por muitos estrangeiros — pessoas que vieram da África, Europa, Oriente Médio e Ásia. Esses olhares externos são fundamentais para nos compreendermos melhor enquanto cultura brasileira".
A busca por pertencimento
Entre as questões que o filme aborda, uma se impõe como fio condutor: a busca por um lugar onde se possa pertencer. Gomes, que dividiu o roteiro com Maria Camargo e Gustavo Campos, destaca esse aspecto como essencial à narrativa.
"Os libaneses estão fugindo de sua terra natal em busca de um lugar para chamar de seu, forçados por questões sociais e políticas, como a guerra. Por outro lado, os moradores da Amazônia, incluindo os povos indígenas, estão sendo expulsos de suas terras. Ou seja, nesse filme, todas as pessoas estão em busca de um lugar para pertencer, mas acabam sendo deslocadas."
Embora ambientado nos anos 1940, o filme também ressoa com inquietações contemporâneas. "Hoje, tanto no Brasil quanto no Líbano, vemos situações semelhantes. Acho muito interessante refletir sobre isso, porque parece que a humanidade aprende mais com os erros do que com os acertos. Por isso, é essencial revisitar a história para não repetir os erros do passado."
Uma utopia possível
Entre os momentos mais simbólicos do filme, Marcelo Gomes destaca uma cena onde distintas expressões de fé se encontram: um personagem muçulmano, Omar, inicia sua oração em meio a uma comunidade indígena, enquanto Emily, cristã, reza ao lado. Ao redor deles, indígenas dançam e cantam para seus deuses.
"Podemos viver de forma pacífica, respeitando culturas e religiões diferentes"Marcelo Gomes
"Para mim, essa cena representa um lugar de utopia, um momento que simboliza a possibilidade de convivência pacífica entre pessoas de diferentes religiões, cada uma com sua fé", comenta.
Gomes amplia a reflexão: "Acredito que a maioria das guerras religiosas que existem hoje em dia não tem, de fato, relação com religião, mas sim com ganância, poder e dinheiro. Pessoas que são genuinamente religiosas não têm o desejo de matar; isso não faz parte do ensinamento de nenhuma religião. Essa é, para mim, a grande mensagem do filme: podemos viver de forma pacífica, respeitando culturas e religiões diferentes."
"Relato de um Certo Oriente" estreia nos cinemas nesta quinta-feira (21).
"Podemos viver de forma pacífica, respeitando culturas e religiões diferentes"
Marcelo Gomes