Futuro Incerto

Coronavírus: Como o adiamento ou cancelamento de Cannes impacta o cinema

Adiado, mas sem data marcada, o prestigiado Festival de Cannes movimenta diversos níveis da indústria cinematográfica, que vive momentos de incerteza com a pandemia do coronavírus

Rostand Tiago
Cadastrado por
Rostand Tiago
Publicado em 23/03/2020 às 14:53 | Atualizado em 23/03/2020 às 15:10
Foto: AFP/Reprodução
O TRADICIONAL FESTIVAL DE CANNES COLABORARÁ COM INICIATIVA QUE REÚNE VIRTUALMENTE DEZENAS DE FESTIVAIS - FOTO: Foto: AFP/Reprodução

Na tentativa de sua primeira edição, realizada em 1939, o Festival de Cannes, hoje o mais importante no mundo do cinema, foi cancelado logo após seu evento inaugural. Um dia depois de exibir O Corcunda de Notre-Dame (William Dieterle), a Alemanha nazista invade a Polônia em um dos eventos-chaves para o estopim da Segunda Guerra Mundial. O festival só seria concretizado de fato em 1946.

Quase 20 anos depois, em 1968, um grupo que reunia nomes como Jean-Luc Godard, Louis Malle e François Truffaut interrompeu as projeções do dia 19 de maio e, em seguida, as do festival como um todo, em solidariedade aos célebres protestos de maio daquele ano. Desde então, Cannes vem acontecendo normalmente, em uma trajetória que o consolidou como evento fundamental para o ecossistema do cinema mundial.

Leia também: Coronavírus: os impactos da pandemia no cinema e na música
Em tempos de quarentena, conheça filmes que refletem sobre o trabalho
Coronavírus: Cinema São Luiz deixa seu recado para os próximos dias difíceis

Agora, mais de 50 anos depois da última interrupção, Cannes está prestes a sofrer outro revés marcante em sua trajetória com o surto do novo coronavírus. Oficialmente, o festival, inicialmente marcado para maio próximo, está adiado, com previsão para meados de junho ou julho. Mas o cenário ainda é incerto e incertezas para Cannes se tornam incertezas para diferentes níveis da indústria cinematográfica.

Por exemplo, milhares de obras são levadas ao Marché Du Film (Mercado do Filme, em tradução livre), o segmento de comércio do festival. É para lá que as produtoras de todo o mundo levam seus títulos de maior potencial para serem negociadas com distribuidoras. Em 2019, 121 países estavam representados nesse mercado, com cerca de 4 mil filmes exibidos. Ou seja, o calendário dos negócios das principais produtoras e distribuidoras está patinando em um gelo fino, principalmente as de fora dos Estados Unidos, que possuem uma segurança menor nesse sentido. O caminho dessas obras deve passar por outros festivais caso Cannes não aconteça, mas é difícil achar um mercado forte como a da Croisette e, de toda forma, bagunça os planejamentos cronológicos dos lançamentos.

Cannes também é um primeiro e talvez o mais importante holofote para produções de elencos estelares e diretores de nomes fortes entre a crítica e o público. E essa dimensão está sempre ganhando outros contornos. É só lembrar que o último vencedor da Palma de Ouro, principal prêmio da competição oficial, foi Parasita, primeiro filme não falado em inglês a vencer o Oscar de Melhor Filme. Ano passado, passaram por lá Pedro Almodóvar (Dor e Glória), Quentin Tarantino (Era uma Vez em Hollywood), a cinebiografia do Elton John (Rocketman). Foi lá também que o pernambucano Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, começou sua carreira internacional, inclusive sendo agraciado com o Prêmio do Júri.

Para este ano, estavam previstas estreias de igual peso em sua programação, que agora talvez não contem com um pontapé tão forte como Cannes. O norte-americano Wes Anderson (O Grande Hotel Budapeste) era uma grande aposta para o festival, levando The French Dispatch, que traz nomes como Benicio Del Toro, Tilda Swinton, Bil Murray, Owen Wilson, Frances McDormand e Timotheé Chalamet no elenco. Já o holandês Paul Verhoeven (RoboCop, Elle) também estava cotado para estar presente com um drama religioso, Bendetta, estrelado Tilda Swinton. Entre outros cotados, encontravam-se Steven Spielberg, Leos Carax, Christopher Nolan, Apichatpong Weerasethakul e Denis Villeneuve.

LOGÍSTICA

Cannes custa caro. Financiado em parte pelo governo francês, em outra pelos patrocinadores, o festival é orçado em cerca de 30 milhões de euros (cerca de R$ 166 milhões). São 40 mil pessoas entre as credenciadas para participar do festival, além dos que se reúnem para ver as estrelas ou apenas desfrutar da atmosfera que anima a avenida Croisette. São elementos de peso na responsabilidade de seus organizadores, que evitam fazer anúncios mais fatalistas.

Quando a epidemia começou a impactar a França, cancelando o grande evento televisivo MipTV, também realizado em Cannes, a organização ainda não falava em qualquer mudança. Com o primeiro decreto de restrição de público pelo governo francês, proibindo eventos com mais de 5 mil pessoas, a postura permaneceu a mesma. Era alegado que o maior número de pessoas em uma exibição do festival era de 2,300 pessoas, mas não levavam em conta as atividades ao redor. Outro decreto colocou a restrição para eventos com mais de 1000 pessoas. Apenas na semana passada, o festival falou sobre o adiamento, quando não tinha mais para onde ir.

As coisas se complicam no lado da viabilidade financeira. O portal americano Variety relatou que o seguro do festival não cobre epidemias e pandemias. Segundo a publicação, a companhia Circle Group, responsável pela apólice, chegou a oferecer a cobertura há 10 dias atrás, cobrando 6% do orçamento do festival, o que dá cerca de 2 milhões de euros. Ao jornal francês Le Figaro, Pierre Lescure, presidente de Cannes, afirmou que a proposta da seguradora era "totalmente desproporcional" e foi recusada. Ainda segundo ele, o evento possui fundos de reserva para cobrir um eventual cancelamento. A torcida é para que ele não precise ser usado e a majestade de Cannes até se atrase, mas não deixe de reinar.

Comentários

Últimas notícias