CINEMA

Em "Crimes of the Future", humanos são quase de plástico e buscam novos prazeres no corpo

Exibido na abertura do Janela, "Crimes of the Future" é um horror ambientado num futuro distópico; filme estreia no catálogo da Mubi, dia 29

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Romero Rafael

Publicado em 15/07/2022 às 19:00 | Atualizado em 03/08/2022 às 17:36
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Tudo é estranho e incômodo em Crimes of the Future, filme de David Cronenberg exibido em sessão de pré-estreia na primeira noite do Janela Internacional de Cinema do Recife, quarta-feira (13). No futuro imaginado pelo diretor canadense, os humanos já não são que nem somos. Estão em mutação (uns já digerem plástico) e vivem numa realidade asséptica, onde não há infecção. Não sentem mais dor física, buscam novos prazeres no corpo. A beleza interior é literal; literalmente, matéria orgânica, mas vista como uma arte plástica — e é curioso que essa certa beleza é boa parte do que causa a estranheza e o incômodo. "A crise é também estética."

Em Crimes of the Future, Saul Tenser (Viggo Mortensen) desenvolve novos órgãos em formatos inéditos e sem funcionalidades conhecidas. Ele extirpa cada neo-órgão com a ajuda de sua parceira, Caprice (Léa Seydoux), uma ex-traumatologista que, munida de tecnologia capaz de fazer cortes e buscas precisas no abdômen, comanda a operação a partir de um robô que parece um controle-remoto.

Saul e Caprice fazem disso arte performática: o procedimento é realizado diante de/para um público. O órgão retirado, em sua plasticidade única, é exposto como arte final para apreciação, enquanto espumantes borbulham em taças, como numa vernissage.

O corpo humano — em suas transformações e intervenções — protagoniza Crimes of the Future, que estreia na plataforma de streaming Mubi no dia 29 deste mês. David Cronenberg transplanta para o corpo coisas que estão numa nova ordem; é na matéria orgânica de todos nós que se dá a ficção de um futuro distópico que parece já inaugurado neste tempo presente — afinal, há microplásticos habitando organismos humanos neste exato momento.

Na exploração do corpo, Cronenberg criou uma cena de cirurgia com libido, que é estranha, mas que exala algo de desejo. O prazer, ali, é alcançado por outra forma de penetração: por um aparato tecnológico que irrompe o corpo e acha o neo-órgão, a tal beleza interior, para um estado de gozo inclusive da plateia. Pode ser uma ponte para pensar sobre as cirurgias plásticas (e as anestesias), que deslocam o procedimento cirúrgico de um lugar de dor para outro de prazer, pela estética, seja você o "paciente" ou a plateia.

Não faz tempo que um médico nos EUA ganhou uma audiência notável ao transmitir cirurgias via Snapchat como entretenimento ou atitude estética. E neste instante é possível que você role o feed do Instagram e encontre um dermatologista realizando uma sessão de microagulhamento, uma aplicação de toxina botulínica, de ácido hialurônico, ou procedimento parecido — técnicas que, minimamente invasivas e precisas, perfuram a pele e injetam substâncias no corpo sem espirrar quase nada, ou talvez nada, de sangue.

Interessante que o horror de Crimes of the Future também é pouco sanguinolento, mesmo com cenas de procedimentos bastante invasivos. O horror, de outra forma, está impregnado na realidade daqueles humanos modificados (e modificando-se); está na decadência daquele lugar e na opacidade daquelas relações; está na busca por prazeres viscerais (de fato) para assim voltar a sentir o organismo vivo.

Programação

Numa sessão antes de Crimes of the Future, o Janela Internacional de Cinema do Recife, que faz edição especial, estreou a obra (apenas sonora) Ouvem-se Estrelas nos Confins de Sonora, da artista Anti Ribeiro, que fez soar, na sala do Cinema da Fundação do Derby, tilintares e cacofonia, sons de belezas e estranhezas.

A programação do festival continua até o dia 24. Neste sábado (16), serão exibidos, às 16h, o filme "Wendy e Lucy" (2008), dentro da mostra "Kelly Reichardt", dedicada à cineasta estadunidense; e às 19h45, o longa "Ladrões de Cinema" (1977), de Fernando Coni Campos, na mostra que leva o nome da obra, cuja seleção traz filmes protagonizados por atores negros e suas presenças incontornáveis. Ambas as sessões serão no Cinema da Fundação do Derby.

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