CINEMA

'A VIAGEM DE PEDRO': filme de Laís Bodanzky destrona o herói dom Pedro I

"A Viagem de Pedro", em cartaz nos cinemas, relata a travessia do imperador de volta a Portugal, após abdicar da coroa no Brasil

Romero Rafael
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Romero Rafael
Publicado em 02/09/2022 às 0:05 | Atualizado em 02/09/2022 às 18:35
FABIO BRAGA/DIVULGAÇÃO
PROTAGONISTA Cauã Reymond é um dos idealizadores e produtores do filme A Viagem de Pedro, em que interpreta um dom Pedro I mais complexo do que diz a história - FOTO: FABIO BRAGA/DIVULGAÇÃO
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Não bastou a dom Pedro I, após abdicar a coroa do Brasil, se meter numa fragata britânica e atravessar o Atlântico naquele abril de 1831 para, em Portugal, guerrear contra o irmão, dom Miguel, e vencê-lo. Tornou-se herói, sim, virou estátua, sim, (seu coração está conservado em formol, também) mas heróis e estátuas (e ainda um coração em formol), hoje, têm sido questionados — e até desfeitos, derrubados.

A diretora Laís Bodanzky, mesmo, desconstrói dom Pedro I em seu filme A Viagem de Pedro, em cartaz nos cinemas.

O perfil arqueológico (e simpático) de um imperador que era um homem simples (que se vestia despojadamente e se aproximava do povo) está mantido nessa obra, mas o herói inflado pela história oficial foi por ela reacomodado no corpo (e nos delírios) de um homem abalado.

Dom Pedro I está no meio do Atlântico, sem trono, excomungado pela Igreja Católica, brochado (enfrentando, além de problema com a ereção, uma infecção sexualmente transmissível) e perturbado pelas memórias, sobretudo, da mãe, Carlota Joaquina, e da primeira esposa, Maria Leopoldina.

Esse dom Pedro I encontra corpo em Cauã Reymond e sua boa boa atuação. O ator teve de maneirar nos treinos, para que seu corpo não faltasse tanto à estética da época. Sua voz, trabalhada pelos sentimento dos mocinhos que já interpretou na TV, às vezes meio aguda e não muito firme, contribui para o desenho de um homem fragilizado e vulnerável.

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Cartaz de 'A Viagem de Pedro' - DIVULGAÇÃO

Licenças poéticas

Laís Bodanzky esteve no Recife, quarta-feira (31), numa noite de pré-estreia no Cineteatro do Parque. Também roteirista do filme, numa conversa com o Cineclube Alma no Olho, realizada logo após a sessão, contou das "licenças poéticas" que imaginou para preencher lacunas sobre essa viagem de retorno do imperador a Portugal, evento pouquíssimo relatado em escritos.

Numa das suas licenças, a roteirista e diretora pôs o fragilizado dom Pedro I cedendo a um jogo de búzios e a um ritual de ebó, prática do candomblé que tem como objetivo afastar um mal que se abate sobre a pessoa.

"Acho que o dom Pedro I, num momento de desespero, tentaria, sim, um ritual de ebó. Isso é inventado, claro, mas analisando as características dele e a situação em que ele se encontrava", explica Bodanzky. "Qualquer um, na hora do desespero, quando enxerga uma possibilidade de salvação, se agarra a isso", completa, numa tentativa de humanizar o (ex-) herói.

Pedro, o tóxico

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OBRA Cauã Reymond vive dom Pedro I no drama histórico que desconstrói a imagem de herói do monarca no momento da sua volta para Portugal - FABIO BRAGA/DIVULGAÇÃO

A Viagem de Pedro humaniza o imperador também ao tentar explicar seu comportamento violento com a primeira esposa, Maria Leopoldina. Laís Bodanzky contou que um de seus desafios na escrita do roteiro era entender porque ele foi um homem tóxico. Ela exibe na tela um dom Pedro abusivo, mas também o que possivelmente o forjou assim. "Normalmente, tem um trauma por trás, inseguranças que fazem com que a pessoa tome atitudes como uma pessoa tóxica", analisa.

"No filme, a gente tem a liberdade poética de entrar no inconsciente e ver os medos, demônios e culpas."

O tal macho tóxico não é o único material contemporâneo que a diretora e roteirista toma e aplica em seu drama histórico. O projeto, que nasceu da vontade de Cauã Reymond e Mario Canivello, sempre teve como premissa olhar para o passado com olhos contemporâneos, no sentido de rabiscar o que a história oficial escreveu em pedras.

Pretos na história

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COPROTAGONISMO Isabél Zuaa vive Dira; obra tem como um de seus valores a escalação de atores pretos e o desenho de seus personagens - FABIO BRAGA/DIVULGAÇÃO

Embora dom Pedro I (e consequentemente Cauã Reymond) esteja no centro da obra, também brilham e, de certa forma, movem o filme os personagens pretos, interpretados por atores brasileiros e de várias partes de África, como Welket Bunguê (o contra-almirante Lars), nascido em Guiné-Bissau, e Denangowe Calvin (Tigre), do Congo, que fala a língua de seu país.

(O filme, aliás, ganha ao formar certa babilônia, de tantos idiomas: o comandante da fragata comunica-se em inglês e é interpretado pelo ator irlandês Francis Magee; Maria Leopoldina, que era austríaca, aparece em flashes falando em alemão, vivida pela atriz germânica Luise Heyer; há atores falando o português de Portugal, enquanto Reymond, alinhado à proposta do filme, de ser contemporâneo apesar de histórico, usa nosso português de agora, às vezes bem carioca.)

Laís Bodanzky, para ocupar o apagamento de pretos na história oficial, buscou as bases de seus personagens no livro Achados e Perdidos da História — Escravos: A Vida e o Cotidiano de 28 Brasileiros Esquecidos pela História, do jornalista Leandro Narloch, que pesquisou em arquivos de delegacias de várias partes do País.

Ela relata também que, desenhadas as bases desses personagens, como mulher branca que é, terminou de construí-los junto ao próprio elenco. "Como essa tela de cinema é um espaço de referências que pode influenciar tantas pessoas, quais histórias de pessoas pretas estão sendo contadas em filmes de época no Brasil?"

Uma das cenas finais, o desfecho da personagem Dira (Isabél Zuaa), é diferente do que Bodanzky havia redigido e estava ensaiado. Dira é uma mulher escravizada que não olha para trás e mira a liberdade. Incomodada com o destino comum de sua personagem, a atriz e a diretora reescreveram aquele fim, de forma que se abriu uma brecha para outra possibilidade de sonho e vida. Zuaa, então, mudou a narrativa.

A Viagem de Pedro é um grande ensaio sobre o que terá sido, além e diferente do que se conta e, oficialmente, tornou-se.

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