Aos 86 anos, o fotógrafo inglês Ian Berry não esperava que fossem acontecer surpresas em sua vida, até receber um e-mail solicitando autorização para utilização de uma foto sua, tirada há 56 anos, em um bar na Cable Street, Zona Leste de Londres. O bar fechou há muito tempo. A foto foi feita quando Berry trabalhava para o jornal The Observer, e tirada para uma matéria sobre cultura negra na Inglaterra. A foto é estranha, meio enigmática, com pouca luz. Dois casais dançando, enquanto um homem curva-se sobre uma radiola de fichas. Não se vê o rosto do homem, o casal em primeiro plano tem as cabeças cortadas na foto. Para que serviria uma foto assim?
Para ilustrar a capa do álbum Rough and Rowdy Ways, 39º título da discografia de Bob Dylan, que chega às plataformas digitais nesta sexta-feira, lançado também em CD e vinil, ambos duplos, com selo da Legacy/Columbia. Três das dez canções do álbum foram antecipadas: False Prophet, I Contain Multitudes e Murder Most Foul, esta última, de 17 minutos, ocupa sozinha um dos discos.
A carreira de Bob Dylan é pontuada por acidentes de percurso, mudanças bruscas de rumo. Quando era considerado o guardião e ponta de lança da pureza e tradição musical do folk americano, ele se plugou e se bandeou para o rock and roll. Quando o queriam farol da juventude, iluminando os caminhos da revolução, ele fez um disco com canções confessionais. Nas décadas seguintes, converteu-se ao cristianismo, logo mais à frente voltou ao judaísmo, virou agnóstico. Imaginava-se que continuaria lançando novos trabalhos, para cumprir tabela, bons, mas não influentes ou com a qualidade do passado quando, em 1997, veio Time Out of Mind, que encantou a crítica e despertou o interesse das novas gerações para sua música.
No século 21, fez discos de profundezas quase inalcançáveis, dedicou um disco ao repertório de Frank Sinatra e gravou um álbum triplo com canções pinçadas do cancioneiro americano. O último de inéditas, Tempest, é de oito anos atrás.
Aos 79 anos, completados em maio, Bob Dylan não refinou apenas a linguagem dos versos, mas o humor e a fina ironia. Se a capa motiva pontos de interrogação, o título vem de uma coletânea de gravações dos anos 20 e 30, My Rough and Rowdy Ways – Early America Rural Music – Badman Ballads and Hellraising Songs (grosso modo, Minhas Maneiras Rudes e Grosseiras – Antigas Músicas Rurais da América – Baladas de Homens Maus e Canções Infernizantes).
"Sou o primeiro entre os pares/primeiro sem segundo/últimos dos melhores/podem sepultar os restantes/", dizem os versos de False Prophet, fanfarrões como fazem os violeiros nordestinos, e os antigos blueseiros.
Dylan é agora um compositor em que as palavras são mais fundamentais do que a música. Em Rough and Rowdy Ways ele não concilia melodias assoviáveis, pop, com as letras que o levaram a ganhar um Nobel de Literatura. Aliás, Dylan está cada vez mais para um ganhador de Nobel. São canções que pedem mais atenção nos versos.
Quatro das faixas se limitam a menos de cinco minutos, as demais vão de seis a 17 minutos. Letras eruditas, nunca a literatura, história e filosofia estiveram tão presentes na canção popular. Curiosamente, Dylan não separa a erudição das referências pop.
Só Dylan reuniria num mesmo verso o roqueiro Leon Russel, o pianista Liberace e o apóstolo São João. As referências e citações vêm de enxurrada, embaladas em música tradicional americana, com um acompanhamento básico, com instrumentação acústica, equivalente a um regional brasileiro, sutil, enquanto a voz rascante nunca esteve tão clara, dividindo as frases com precisão, cantando como se recitasse. Fiona Apple e Blake Mills têm participações no disco.
Não tivesse sido a primeira canção do álbum liberada nas plataformas de streaming, Murder Most Foul atrairia as atenções por si só. A canção é um épico pop erudito, que tem por leitmotiv John Kennedy, cuja morte em 22 de novembro de 1963 é metaforicamente tida como o dia em que a America perdeu a inocência. Dylan vai atando história e cultura pop ao longo de quase 18 minutos.
MORTE
Desde Time Out of Mind, de 23 anos atrás, velhice e morte são temas que fascinam Dylan. Crossed The Rubicon é uma alusão à própria e inevitável morte, de quem está com a idade para atravessar o rubicão, citação ao imperador Júlio César.
Na faixa My Own Version of You ele constrói a amada a partir de partes de pessoas que já morreram, que vai buscar em mosteiros, mesquitas: "Vou trazer alguém à vida, é o que quero fazer/vou criar minha própria versão de você". Muitos mortos desfilam pelas canções do álbum, Martin Luther King, John Lennon ou o blueseiro Jimmy Reed. Um disco em que a Bíblia e William Shakespeare estão onipresentes, com uma interminável lista de nomes, feito o poeta Blake ou o radialista Wolfman Jack. Um disco que impressiona pela vitalidade, que lembra o Dylan de início de carreira, mas sem a mínima concessão. O ouvinte tem que correr atrás. Uma corrida que vale a pena.
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