Disco

Vanderlei Pereira perdeu a visão e reinventou-se como músico em Nova Iorque

Baterista e percussionista, ele lança disco de MPB e Jazz com a banda Blindfold Test

José Teles
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José Teles
Publicado em 07/12/2020 às 12:32
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TALENTO Vanderlei Pereira tocou na Orquestra Sinfônica Brasileira, mas, devido à doença nos olhos, teve que abdicar do cobiçado posto - FOTO: Divulgação
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Blindfold test, literalmente, “teste de olhos vendados” é uma seção da revista Downbeat, na qual instrumentistas ou interpretes de jazz escutam determinados temas, sem que lhe digam quem os executa, e tentam descobrir de quem são as gravações. Brindfold Test é também o grupo do baterista fluminense Vanderlei Pereira que, há mais de trinta anos, mora em Nova Iorque. Pouco conhecido no Brasil, até os anos 80, ele foi músico da Orquestra Sinfônica Brasileira, dirigida pelo maestro Isaac Karabtchevsky, mas incursionava pela MPB, tocando e gravando com nomes feito Guilherme Arantes, Beth Carvalho, Geraldo Azevedo, Amelinha, entre muitos outros.
Em 1986, depois de um processo que começou na infância, perdeu a visão, devido a uma doença congênita, a retinitis pigmentosa, e tornou-se completamente cego (o mesmo aconteceu com seus irmãos). Incapacitado a ler partituras, ele deixou a sinfônica. Em 1988 foi para Nova Iorque, onde começou a tocar e a estudar com nomes importantes do jazz da cidade, Ignacio Berroa, Bobby Sanabria, Johnny Almendra, John Riley. Mas não aconteceu assim, como num passe de mágica.

Primeiro seu grande amigo, o violonista Romero Lubambo, com quem ele tocou bastante no Rio, foi para os Estados Unidos. Lá ele começou a tocar com uma banda, em que conheceu a pianista, também percussionista Susan Pereira, que lhe revelou estar indo ao Rio, queria conhecer os ritmos brasileiros. Lubambo pediu que ela entrasse em contato com Vanderlei: “A gente se conheceu, saiu para tomar uns chopes, nesta época eu ainda via, estava perto de cegar. No começo era apenas amizade, mas no ano seguinte pintou uma paixão, isto no finzinho da visão. Foi aí que resolvi ir para os Estados Unidos. Na verdade, era um sonho meu, conhecer aquelas bandas que eu adorava, Bloody Sweat and Tears, Chicago Transity Authority, o que tinha mais lá que eu não conhecia”, conta Vanderlei, em conversa por telefone, de Nova Iorque.
Ele se tornou bastante requisitado pelo domínio dos vários ritmos brasileiros, inclusive do frevo. É um dos raros bateristas não pernambucanos a tocar frevo sem sotaque. Agora finalmente Vanderlei Pereira e o Blindfold Test lançam o primeiro disco, Vision For Rhythm (Jazzheads), uma festa de ritmos brasileiros, abrindo com o samba Misturada (Airto Moreira). São 12 temas, parte deles com o vocalise de Susan Pereira, mulher de Vanderlei (o disco foi produzido pelos dois).
A Blindfold Test é formada por Jorge Continentino (flautas e sax), Rodrigo Ursaia (sax), Deanna Witkowski (piano), Paul Meyers (violão), Gustavo Amarante (baixo), e Itaiguara Brandão (baixo). Vanderlei prova-se também um compositor de talento. Um samba seu, O que Ficou tem uma melodia que parece à espera de um letrista (ele assina mais quatro faixas do álbum). Vision for Rhythm segue também a tradição dos grupos instrumentais de samba jazz, de meados dos anos 60, que equilibravam elegância com exuberância instrumental.
A deficiência visual acabou levando a inovação na banda de Vanderlei Pereira. Com os músicos não estavam conseguindo ler as mudanças que o baterista fazia nas partituras, de tanto rabiscá-las elas se tornavam quase ilegíveis. De brincadeira este sugeriu que decorassem as músicas como ele próprio fazia, e se possível tocassem com vendas nos olhos nas performances das músicas mais complexas. Os músicos fizeram isto mesmo. E funcionou. Eu memorizo rápido. Chegava aos ensaios já preparado, com a música na cabeça, enquanto os músicos estavam na partitura. Meus irmãos me ensinaram a não se ligar só na bateria, mas nos outros instrumentos. Sugeriram que aprendesse harmonia, violão, piano, você vai aprender a tocar melhor bateria, Baterista tem que ser versátil”, diz Vanderlei.
Ele dispensa eufemismos politicamente para sua cegueira: ”Tento manter uma atitude positiva. Tive que lidar com a perda quando já trabalhava como músico. Levou mais de vinte anos para aceitar a cegueira completamente, e desenvolver a capacidade de ver as coisas com positividade. Tento compartilhar um pouco deste otimismo. Odiaria pensar que as pessoas sentem pena de mim. Sou cego, mas e daí? Tenho a música e minha própria maneira de ver as coisas”.
Nascido em Macaé, no interior do Estado do Rio, ele veio de uma família de músicos. É irmão do Maestro Macaé, que tocou com nomes feito Adriana Calcanhotto, Chico Buarque, Simone, Djavan. Quando deixou a sinfônica durante algum tempo atuou no universo da MPB do Rio, trabalhando com Leila Pinheiro, Rildo Hora, Sivuca, Johnny Alf. Nos Estados Unidos, além de tocar com muita gente, ele entrou para o mundo acadêmico, ensinando em universidades, e escolas de música em Nova Iorque.
DISCO
Vision for Rhythm tem um pouco de didático, porque não se fixa num só ritmo. A citada O que Ficou, comenta Vanderlei, é um samba lento com toque saudoso de bossa nova, enquanto Ponto de Partida, que tempera com jazz um partido alto, daí para um frevo, De Volta a Festa, cuja inspiração veio de um amigo nova-iorquino que foi passar o carnaval no Recife, adorou o frevo, mas fazia o passo totalmente desajeitado: “Isso me estimulou. Intencionalmente, quebro regras do frevo, tendo como influências bateristas de jazz, alterando o fraseado comum do Brasil para o daqui”, diz Vanderlei que já tocou com a Spokfrevo Orquestra nos EUA: “A gente se encontrou e eu lhe disse que já havia tocado Frevo Sanfonado com Sivuca, e o maestro Spok me convidou para fazer uma participação no show da orquestra. Foi incrível tocar frevo com pernambucanos”, exulta o baterista.
Ele conta que mal chegou a Nova Iorque foi recebendo convites para tocar, o que faz com que seja, no mínimo, curioso, que só agora, três décadas depois, ele grava o primeiro álbum: “Demorei a fazer meu disco, porque já cheguei cego. Tive que aprender a ser cego, numa nova cultura, com uma nova língua, tive que aprender muita coisa. E para pagar as contas vivi como sideman (acompanhando artistas em estúdio ou palco), vi que estava indo bem, como sideman. Foi o dono de um dos clubes daqui que pediu para eu montar uma banda. Depois passaram a cobrar o disco, que foi gravado antes da pandemia, em dois dias.Pra minha surpresa, o bom acolhimento do disco ultrapassou as expectativas, tocou muito, está sendo bastante elogiado. Dizem que é um disco único, todas as faixas são boas. Calhou que as minhas composições foram as mais tocadas”, exulta Vanderlei Pereira


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