Por que uma mobilização de caminhoneiros é capaz de parar o Brasil?
A falta de uma ligação ferroviária ligando várias regiões do País gerou a concentração no transporte rodoviário, responsável por mais de 61% de toda a carga movimentada no Brasil
Somente o começo de uma paralisação dos caminhoneiros foi suficiente para os pernambucanos reviverem, nas primeiras horas desta quinta-feira (09) em Recife e mais 15 capitais, um pouco do caos que foi a greve dos caminhoneiros em maio de 2018, quando a economia ficou totalmente parada. Durante a paralisação, foi difícil comprar um botijão de gás de cozinha e até mesmo abastecer o veículo com combustível num posto. Mas por que o Brasil continua tão dependente das rodovias ? A resposta é formada por alguns fatores. Primeiro, faltou planejamento de longo prazo nas últimas décadas, que deveria ter sido feito pelo governo federal. E isso ocorreu junto com o sucateamento da malha ferroviária do País que já chegou a interligar o País do Sudeste ao Nordeste - e a forma tímida em que a cabotagem, o transporte entre os portos de um mesmo País, é usada até hoje para transportar grande quantidade de cargas.
- MPPE alerta população a buscar informações sobre mobilizações de caminhoneiros somente em sites confiáveis
- Caminhoneiros recebidos por Bolsonaro dizem que só encerram mobilização se pauta contra STF avançar
- Doria promete usar força policial caso caminhoneiros bloqueiem estradas
- Caminhoneiros dizem que seguirão mobilizados até serem recebidos por Pacheco
- Caminhoneiros: Infraestrutura mostra estados onde há bloqueios e aponta para redução; veja
E a soma dos fatores citados acima resultou numa grande concentração da movimentação de cargas no transporte rodoviário, responsável por 61,1% de tudo que é transportado no País. Enquanto nos países desenvolvidos grande parte da carga vai pelo trem, aqui somente 20,7% são transportados por ferrovia. O transporte aquaviário responde por somente 13,6% das cargas, enquanto o dutoviário e o aéreo ficam, respectivamente, com 4,2% e 0,4%, segundo dados da Confederação Nacional do Transporte (CNT) de 2019.
O que barateia o preço do frete é usar o meio de transporte mais barato para cada distância adequada, segundo pelo menos dois dos especialistas consultados pela reportagem do JC. Em média, o transporte por caminhão deveria ser utilizado para transportar mercadorias por, no máximo, até 700 quilômetros. "Num país continental feito o Brasil o que resolveria as grandes distâncias seria a ferrovia. O ideal seria a multimodalidade", diz o presidente da Associação Nordestina de Logística (Anelog), Fernando Trigueiro. A multimodalidade significa usar vários meios de transporte, como o caminhão, navios e trens, de uma forma integrada, optando pelo que fosse mais barato em cada um dos trechos a serem percorridos.
"Isso também é um problema político. Continuamos sendo o único país continental que depende das rodovias. E isso só vai se resolver, quando tiver um projeto que integre as várias ferrovias, cortando o País. Enquanto não houver integração entre os vários modais (meios de transporte) o Brasil vai continuar amarrado numa logística capenga que deixa a desejar", explica Fernando. No caso do Nordeste, isso significa também que mesmo se sair do papel a Ferrovia Transnordestina não vai resolver o problema de falta de uma conexão ferroviária, ligando o Sudeste ao Nordeste.
O eixo pernambucano da Ferrovia Transnordestina que está sendo articulado para sair do papel é apenas um pedaço do antigo projeto, ligando a cidade de Curral Novo, no Sul do Piauí, ao Porto de Suape, trazendo um meio de transporte mais barato para vários Estados do Nordeste, principalmente, para os Estados por onde os trilhos vão passar e os seus vizinhos. "Agora, é que está se começando a falar de fazer uma conexão da Transnordestina com a Ferrovia Norte-Sul", comentou Fernando. No entanto, até hoje não há mais detalhes sobre isso. Na Ferrovia Norte-Sul foi desenhada para ser a espinha dorsal da novas ferrovias do País,transportando a carga da cidade de Porto Nacional, no Tocantins, até o Porto de Santos, em São Paulo. Uma parte do Tocantins fica próximo ao Sul do Piauí. A Norte-Sul está em obras e foi anunciada no Governo de José Sarney (1985-1990).
Enquanto a Transnordestina ainda é uma obra inacabada e o Nordeste totalmente isolado dos trens das outras regiões, o consumidor nordestino continuará pagando o meio de transporte mais caro, o rodoviário. "O transporte rodoviário traz um impacto, em média, de 14% no preço de um produto, enquanto a integração entre o ferroviário e o rodoviário resulta num impacto de 9%. E se for usado só o ferroviário isso pode representar de 6% a 7% no preço final de um produto", resume Fernando.
"Há uma relação entre o subdesenvolvimento e o uso do transporte rodoviário. Todos os países ricos usam ferrovias para transportar grande parte das suas cargas e acabam pagando mais barato. Os países pobres, como o Brasil, usam rodovias e pagam mais caro. A cadeia logística escolhe o mais caro, porque não há ferrovias e o transporte marítimo não alcançou o seu potencial", resume o professor de Logística do Centro Universitário Tiradentes (Unit-PE) Paulo Alencar. Numa estimativa de preço, o transporte ferroviário é o mais barato e logo em seguida vem o marítimo.
O que fez a diferença entre os países ricos e o Brasil é que eles foram melhorando o sistema ferroviário que começou há mais de 200 anos e depois disso investiram nesta infraestrutura. "No Brasil, as ferrovias foram sucateadas, principalmente depois da década de 60", lembrou Paulo. O Nordeste tinha ligação ferroviária com o Sudeste até o final dos anos 90, quando começou a concessão da empresa ligada ao grupo da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) que desativou uma linha que ia de Propriá, em Sergipe, ate São Luís, no Maranhão e nenhuma gestão do governo federal, desde Fernando Henrique Cardoso, aplicou qualquer multa ou penalidade à concessionária.
REGENTE
Consultor do Comitê Tecnológico Permanente (CTP) do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura de Pernambuco (Crea-PE), o engenheiro João Recena argumenta que falta um regente ao setor de transporte no País. "Não é só fazer um plano de logística e colocar na prateleira. O governo federal deveria reger esse plano de uma forma similar ao que é realizado no setor elétrico do País, que segue uma lógica, uma diretriz", comenta, se referindo ao fato de que foram feitos planos nacionais de logística, mas não foram executados. Ele é ex-secretário de Planejamento no terceiro governo de Miguel Arraes.
Ainda fazendo comparação com o setor elétrico, Recena citou como exemplo a criação da Empresa de Planejamento Energético (EPE) que ocorreu no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995 a 2002). Desde então, vários investimentos privados ocorreram na área de energia, resultando em novas empresas privadas que passaram a operar no setor, cumprindo o que estava desenhado nos planos de expansão da geração e transmissão da energia elétrica. Por isso, hoje o sistema elétrico é todo interligado e aumentou o parque gerador instalado no País.
Recena argumentou também que não adianta pensar que de um dia para o outro, por causa de uma greve, vão se instalar grandes ferrovias no País. Primeiro, porque os investimentos em ferrovias são altos nas cifras dos bilhões. "As ferrovias precisam de cargas concentradas, em grandes volumes e todo dia para serem bem sucedidas, como ocorre com a ferrovia Vitória-Minas e a ferrovia de Carajás", revela. Ambas as ferrovias por ele transportam minério de ferro para empresas.
O ex-secretário diz que o sistema rodoviário no Brasil é bem eficiente por fazer o porta a porta de uma maneira rápida. "Uma parte das ferrovias não conseguiu competir com o sistema rodoviário e nem com o marítimo. Por exemplo, um carro que vai ser transportado de navio numa determinada distância muitas vezes chega mais rápido pelo caminhão", compara.
O problema é que o Brasil perdeu o trem da história, quando deixou uma parte dos seus trens virar sucata com a conivência do governo federal que privatizou grande parte da malha já sucateada na década de 90. O presidente da Frente Nacional pela Volta das Ferrovias, José Manoel Ferreira, conta que faltou "atitude, coragem, bom senso e prioridade" do governo brasileiro. E acrescenta: "Não tivemos estratégias para médio e longo prazos. Precisamos agir com a máxima urgência para em etapas, cumprindo metas estruturantes, desconcentrar nossa matriz de transportes e com isso enfrentamos dois desafios: a emergência climática e a questão logística em um país de dimensões continentais". Ele defende também que o Estado deveria "priorizar investimentos pesados, recuperar esse papel insubstituível como regulador, definir regras claras e seguras para o setor, atraindo o capital privado, com criatividade e construir mecanismos que possam dar previsibilidade no tempo de maturidade não apenas no horizonte de implantação dos projetos, mas para três décadas à frente".