A vida sem acesso à água e esgoto no Recife e em Jaboatão, cidades entre as 20 piores do Brasil no ranking do saneamento
Em Pernambuco, apenas 30,8% da população tem acesso a esgoto e 81,7% a água tratada. Antes mesmo do Novo Marco Legal do Saneamento, PPP Cidade Saneada faz planos de universalizar os serviços em 15 cidades
Sérgio Tenório, 52 anos, conta que precisa desviar do esgoto para chegar ao final da Rua Laguna e entrar na casa onde mora, na comunidade Novo Horizonte, em Barra de Jangada, no município de Jaboatão dos Guararapes. Há 21 anos vivendo no local, ele reclama que o lugar parou no tempo quando o assunto é saneamento. Hilda Valdevina, 54 anos, perdeu as contas de quantas vezes precisou levantar o piso da sua casa para evitar que a água da chuva com esgoto invadisse o barraco. Acabou desistindo e saindo de Novo Horizonte. São histórias de pessoas sem acesso ao saneamento básico.
No Brasil, quase metade da população (100 milhões de pessoas) não têm serviço de coleta de esgoto e 35 milhões não têm acesso à água tratada. Na terça-feira (22), o Instituto Trata Brasil divulgou o ranking do serviço de saneamento básico nas 100 maiores cidades brasileiras. São Paulo, Paraná e Minas Gerais ocupam as primeiras posições, enquanto cidades do Norte e do Nordeste estão entre as mais vulneráveis. Recife e Jaboatão dos Guararapes aparecem na lisa das 20 piores deste ranking.
Em entrevista à Rádio Jornal, no dia 22 de março, a engenheira ambiental da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) Soraya El-Deir analisou as posições dos dois municípios e a realidade do saneamento básico em Pernambuco. Confira:
"Eu já cheguei a colocar placa de vende-se na minha casa para sair daqui, mas quem quer ficar à beira do esgoto? Quando usamos o banheiro ou as torneiras, a fossa vai para a canaleta e fica escorrendo pelo meio da rua. O mau-cheiro entra em casa e o local é foco de mosquitos e doenças. Não deixo meu filho pequeno brincar do lado de fora, nem ficar sem sandália", diz Tenório, na tentativa de proteger o pequeno Theo, 3 anos. "Nos 20 anos que moro aqui, nada mudou. O esgoto continua correndo pela rua e quando chove, a á água se mistura e forma poças", reforça.
Conhecida por ser uma área alagada, cercada por pequenas lagoas, Novo Horizonte foi chamada durante anos de Suvaco da Cobra, antes de ser rebatizada. O apelido fez jus ao local, onde já foram encontradas cobras e até jacarés. "Eu ficava apavorada quando chovia e começava a alagar tudo. Para entrar na minha rua era preciso usar botas de canos longo pra evitar o contato com a água suja do esgoto misturada com a da chuva. Além disso, ainda tem os ratos nadando e o temor que as cobras apareçam. Subi tanto o piso da minha casa que, de pé, a cabeça da gente quase batia no teto. Decidi ir embora, mas minha filha ainda mora aqui com meus netos em outra casa", observa Hilda.
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Sem banheiro, sem dignidade, à espera de uma solução
Na capital pernambucana são muitos os locais sem acesso a saneamento básico. Na comunidade do Pilar, 'escondida' em pleno Bairro do Recife, as condições sanitárias beiram o caos. Ter banheiro em casa é privilégio. Muitas famílias utilizam um espaço coletivo improvisado para fazer suas necessidades. As quatro paredes improvisadas em madeira servem para tomar banho (com água de um tonel) e defecar. Não tem privada no lugar. As pessoas usam um saco e depois desprezam o pacote.
Mesmo para quem tem banheiro em casa, o benefício é incompleto. As casas que têm privada, torneira e chuveiro instalados, nunca viram eles funcionando plenamente. Sem água encanada, a descarga, a lavagem dos pratos e o banho são de 'cuia' (juntando água em baldes e bacias). É a realidade da casa de Cristiane Silva.
Ela conta que, para minimizar as dificuldades, as mulheres colocaram uma mangueira em um ponto de água na comunidade para lavar louça e roupas. "Improvisamos uma lavanderia, com uma lona no chão, a mangueira e o sabão para garantir a lavagem", diz.
Futuro do saneamento em Pernambuco
Aprovado em 2020, o Novo Marco Legal do Saneamento tem a meta de universalizar a oferta de água e esgoto no Brasil até 2033. Para isso, aposta na entrada da iniciativa privada no processo e prevê um investimento de R$ 700 bilhões no setor. A pandemia da covid-19 atrapalhou o início do Novo Marco. A expectativa anual de investimento era de R$ 30 bilhões por ano, quando em 2020 ficou em R$ 13,7 bilhões, tornando a meta mais difícil de ser alcançada.
A 14ª edição do Ranking do Saneamento, realizada em parceria pelo Instituto Trata Brasil e GO Associados, baseia-se nos dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) de 2020 para avaliar a situação dos 100 maiores municípios brasileiros. Das duas cidades pernambucanas que aparecem no ranking entre as 20 piores do País, Jaboatão dos Guararapes tem situação mais crítica. Pelos dados do SNIs, apenas 21,78% da população total tem acesso a rede de esgoto e 79,76% a água tratada. No caso do Recife, a situação é um pouco melhor, mas não menos preocupante. Só 30,8% das pessoas têm serviço de esgoto e 81,7% de água.
A aposta na mudança deste cenário está na PPP Cidade Saneada, parceria da Companhia de Saneamento de Pernambuco (Compesa) com a BRK Ambiantal. A PPP foi criada antes mesmo da aprovação do Novo Marco Legal do Saneamento. Com investimento previsto em R$ 7 bilhões, a PPP tem a meta de atingir 90% de cobertura de esgoto nos 14 municípios da Região Metropolitana do Recife (RMR), além da cidade de Goiana (Mata Norte). O programa está há 8 anos em operação e investiu R$ 1,7 bilhão.
"Diante da magnitude do programa, os primeiros anos das ações foram voltados para a recuperação e modernização das 200 unidades de esgoto existentes, entre estações de tratamento e estações elevatórias e o desenvolvimento de estudos e projetos para novas obras. Com os projetos em mãos, a Compesa, e sua parceira, a BRK Ambiental, deu início a fase das obras físicas para a ampliação dos sistemas de esgoto existentes e para a implantação de novos. Diante do alto montante de investimento e também do volume de empreendimentos necessários, a Compesa estabeleceu um planejamento que vem sendo cumprido.
Desta forma, o Programa Cidade Saneada segue com um grande pacote de obras em execução, alcançando o montante de R$ 1,7 bilhão de investimentos e uma taxa de cobertura de 40% na RMR, com expectativa de chegar a 53% em 2025 e, ao final do projeto, em 2037, a 90%, beneficiando mais de seis milhões de pessoas com recursos da ordem de quase R$ 7 bilhões. Até o momento, já foram implantados nove novos sistemas de esgotamento sanitário nas cidades de São Lourenço da Mata, Recife, Olinda, Paulista, Cabo de Santo Agostinho, Ipojuca, Goiana e Jaboatão dos Guararapes. Outras 11 obras estão em andamento", detalha a Compesa, por meio de nota.
Sobre os problemas das comunidades citadas pela população na reportagem, a Companhia diz que Novo Horizonte está na PPP Cidade Saneada, mas que o caso do Pilar terá quer ser estudado para encontrar outra solução.
"A localidade Novo Horizonte (antigo Sovaco da Cobra), em Barra de Jangada, Jaboatão do Guararapes, está inserida nas obras da segunda etapa do Sistema de Esgotamento Sanitário - SES Prazeres, que estão em curso nos bairros de Candeias, Piedade, Barra de Jangada, Prazeres e Cajueiro Seco, com previsão de conclusão em julho de 2023. Serão mais de 100 mil moradores beneficiados nessa etapa, com investimentos de R$ 217 milhões", observa.
"Já sobre a Comunidade do Pilar, no Recife, a Companhia adianta que a localidade está nos estudos do programa Cidade Saneada. Por fim, a Companhia lembra que em áreas onde ainda não há cobertura de esgotamento sanitário, a recomendação é a utilização de solução individual, a exemplo das fossas sépticas", sugere.