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A moralidade humana

DAYSE DE VASCONCELOS MAYER
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DAYSE DE VASCONCELOS MAYER
Publicado em 13/03/2022 às 6:07 | Atualizado em 14/03/2022 às 16:37
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O moço chegara dos EUA onde havia concluído o PHD. Filho de intelectuais recifenses, foi convidado para realizar uma exposição no início da tarde. Cheguei cedo e ocupei a cadeira da frente. Não recordo o título da palestra, mas sei que ponderava sobre a fome escudada na miséria nordestina.

Sem conseguir conter a comichão nos neurônios, pedi para formular uma pergunta. O rapaz abriu um riso tosco de Monalisa e pensou nos meus 20 anos: eu exigia o porquê do aumento progressivo de crianças pobres enquanto a classe alta limitava cada vez mais o número de filhos.

E concluía: os japoneses gostam de dizer que é necessária uma aldeia para educar uma só criança. O que sucederá, no futuro, com essa geração faminta e sem educação? Por certo ingressarão no crime organizado. O conferencista silenciou. Também o auditório. Escutei alto a frase: Você deveria estar no meu lugar já que se acha tão talentosa. Evidentemente, um burburinho se formou e o conferencista saiu do ar. Tive que escapulir pela porta lateral.

Há pouco dias reli a obra de Steven Levitt um dos maiores talentos do seu tempo e merecedor da medalha “Clark” atribuída a cada dois anos ao economista mais talentoso com menos de quarenta anos.

A minha indagação ao conferencista poderia estar associada aos estudos de Steven. O autor recordou a situação de Norma McCorvey – jovem com 21 anos - que logrou mudar o curso dos acontecimentos nos EUA. Ela só queria fazer um aborto, mas era analfabeta, sem teto e usuária de drogas.

No Texas e em quase todos os estados norte-americanos, o aborto era ilegal. Todavia, sucedeu o inusitado: o caso de Norma foi encampado por muita gente e acabou na Suprema Corte. Quando a decisão favorável foi proferida, a criança já havia nascido e sido adotada.

O mais curioso é que na experiência humana não é a vírgula que prevalece, é o ponto final. Anos mais tarde, com a privação do nascimento das crianças por força da liberalização do aborto, concluiu-se que o índice de criminalidade havia despencado consideravelmente. Não eram as balas que rompia o arquétipo reinante. Era a fome, a falta de educação e a incúria dos políticos.

Abomino o aborto e não suporto a ideia de expansão das indústrias armamentistas objeto da oratória e dos gestos com dois dedos do governante. Elas são cogumelos em suas diferentes formas crescendo no solo da exclusão e da desigualdade.

Contudo, é difícil optar entre morrer ao relento e cheio de fome ou perecer puxado por uma grua de ferro. Convém lembrar que se os ricos se livram dos seus próprios filhos, por que ficariam com os rebentos do outro? O orador esqueceu tudo isso.
Dayse de Vasconcelos Mayer é escritora

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