Em todo lugar, mas invisíveis

SAULO MOREIRA
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SAULO MOREIRA
Publicado em 01/08/2020 às 6:00
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Que os grandes heróis da pandemia são os médicos, enfermeiros e os que, direta ou indiretamente, trabalham com saúde, não resta dúvida. Bem, talvez ainda reste dúvida entre os que negam a importância da ciência. Mas isso é outra discussão.

Há, porém, uma categoria que, à margem do mercado formal, também deveria ser homenageada: os entregadores. Como outros profissionais, deveriam ser aplaudidos das varandas. Mas não são. Talvez dê tempo. São muitos e estão por aí. Mochila nas costas, uma mão no guidão, outra no celular, olhos pra lá e pra cá. Às vezes nos chateiam, às vezes nos salvam.

Riscam as avenidas, praças, esquinas, semáforos. Aceleram, param, caem, levantam. Remédio, comida, bebida e outras coisas só chegam nos lares abastados por causa desses jovens.

Com a reativação da economia, é possível que a demanda sobre eles seja reduzida. Mas não os esqueçamos. Na fase mais triste da quarentena, o silêncio só era quebrado pelo ronco dos motores. Aquele barulho, então irritante quando, felizes na normalidade não sabíamos o que era covid-19, agora era o sinal de que alguém estava sendo atendido.

A fome, a sede, a dor de cabeça ou a lucidez o incomoda? Basta entrar no app. Minutos depois o interfone toca. Agradeçamos aos motoboys, este estrato formado por quem não tem vínculo empregatício, nem FGTS, tampouco INSS, 13º, férias remuneradas ou hora-extra. O que há é um veículo de duas rodas que muitas vezes nem pertence àquele que o dirige.

É precariedade demais, risco demais. O coronavirús de um lado, a amputação do outro. Não pode atrasar. É repreensão, é menos entrega, é menos gorjeta. É risco, é luta. É sinal dos tempos. Seria o modelo das modernas relações de trabalho defendidas por acadêmicos que têm ojeriza a excessos normativos?

Numa noite recente, fui direto ao restaurante. Fiquei esperando em meio a dezenas de motoboys. Máscaras no rosto, capacete no antebraço, conversavam atentos ao chamado da funcionária. Cada chamada é uma corrida. Uma comissão.

Percebi que se juntavam de acordo com a potência da moto. Às vezes, essa organização era quebrada e os grupos se formavam levando em conta a empresa de aplicativo ao qual estavam "ligados". A conversa agora tratava de remuneração e de locais complicados de se encontrar via GPS. Sorrisos, reclamações em voz alta. São jovens.

De repente, uma chuva torrencial. Fui embora. Da segurança do carro, vi que, sob a marquise do restaurante, todos se uniram. E fitando o asfalto molhado que refletia a luz dos edifícios, calaram-se por segundos.

Saulo Moreira, jornalista

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