Mafalda

Flávio Brayner
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Flávio Brayner
Publicado em 14/10/2020 às 2:00
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Mafalda, a imortal criação de Quino, tem hoje 56 anos e acaba de ficar órfã de pai. Mesmo sendo uma senhora de meia idade, ela jamais perdeu sua "criancice", e a morte de seu pai provocou uma onda mundial de tristeza e de uma espécie de desamparo: ficamos todos meio órfãos!

Há personagens que com suas vozes pessoais e singulares falam por todos os homens e são capazes de atravessar os tempos, singrar toda a História e permanecer nossos contemporâneos: como se existisse algo de perene no "humano", algo que não está sujeito às contingências. Por que o ciúme de Otelo é o ciúme de TODOS os homens? Por que o amor interdito de Julieta e Romeu é o sofrimento amoroso de TODOS nós? Por que Lizzie, a "prostituta respeitosa" de Sartre encarna a luta de TODOS os homens pelo testemunho da verdade? Por que a revolta de Antígona contra o arbítrio de seu tio é a revolta de TODOS nós contra a tirania? Por que Mafalda, a criança que com sua perspicaz revolta crítica sobre a condição do homem contemporâneo permanecerá, enquanto formos capazes de revolta? Não sei! Na verdade não acho que tenhamos resposta adequada à questão "O que faz de um homem um Homem"?!

A menina Mafalda é, na verdade, a personificação da razão crítica. No capítulo "Das três metamorfoses" ("Assim falava Zaratustra"), Nietzsche mostra as transformações do espírito: como ele muda do Camelo para o Leão e do Leão para a CRIANÇA. "É que a criança é (...) novo começo, jogo, roda que se move dela mesma, primeiro motor, santa afirmação". Permanecendo criança num mundo que envelhece e onde envelhecemos (e ao envelhecermos o vemos com olhos "velhos"), Mafalda nos ajuda a não nos acostumarmos com o mundo, a tomarmos distância judicativa dele, a exercermos o que os gregos chamavam de "Thaumadzein" (a "ad-miração", o "ver de fora"). Mafalda mostrou de forma simples toda a infelicidade de "Nuestra América": ela é o nome da consciência política que nos impede de nos tornarmos "rebanho"!

Mafalda não gostava de sopa! "Sopa" é a metáfora da imposição de uma autoridade educativa que acredita que me constrangendo me fará "amadurecer", que "sabe" sobre meu futuro o que eu mesmo ignoro. Amadurecer, aqui, é sinônimo de aceitar e resignar-se. Detestando "sopa", Mafalda nos incitava a não aceitarmos a humilhação como normal, o mal como banal, a indignidade como natural e que precisamos de olhos novos para perceber o que, às vezes, só as 'crianças' (os "recém-chegados") podem perceber. Perdemos Quino (com muita tristeza), mas o grande desastre mesmo é perder o espírito de Mafalda"

Flávio Brayner, professor titular da UFPE

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