ARTIGO

Ao dizer que é preciso armar a população para que ela preserve sua liberdade, presidente ataca papel das Forças Armadas

"A autotutela da cidadania, via armas, desacredita o papel das políticas de segurança, corrói a democracia, e é uma ilusão que sai caro a toda sociedade". Leia a opinião de Raul Jungmann

Raul Jungmann
Cadastrado por
Raul Jungmann
Publicado em 18/02/2021 às 6:04
Arquivo / Agência Brasil
"Mais armas, a literatura mundial tem consolidado, mais mortes" - FOTO: Arquivo / Agência Brasil
Leitura:

No dia 12 de outubro de 1936, o oficial franquista José Milan Astray, durante a cerimônia de abertura do ano letivo na Universidade de Salamanca, em resposta ao discurso contra o fascismo proferido pelo filósofo Miguel de Unamuno (1864/1936) reagiu, aos gritos, com uma série de impropérios, em nome da brutalidade fascista como valor absoluto, concluindo com a tristemente famosa frase, "Abajo la inteligência, viva la muerte!".

Esse fato histórico me veio à mente ao ler os quatro decretos recentes da Presidência da República visando a desregulamentação e afrouxamento dos controles sobre as armas entre nós. Da sua exegese resta claro o malefício contra a vida e, reversamente, o benefício à violência, ao crime organizado e às milícias.

Armas e equipamentos, antes restritos e sob o controle do Exército, são liberados. Amplia-se a munição disponível, idem armas de uso restrito. Afrouxam-se os controles sobre renovação de registros de atiradores, antes feitos pela Polícia Federal e agora passa para os clubes de tiro etc.

Tudo na esteira de 30 outros decretos ou regulamentações diversas na mesma direção: liberar o acesso e promover a massificação das armas no país. Mas há mais outras questões, e graves. Até aqui o debate sobre o armamento ou não da população, era travado no âmbito da segurança pública, da sua maior ou menor contribuição para a segurança individual - jamais pública! Ao afirmar que é preciso armar a população para que ela preserve sua liberdade, o Presidente politiza o debate e ataca frontalmente o papel constitucional das Forças Armadas. Na constituição de uma nação, qualquer nação, o seu nascimento efetivo se dá quando o Estado passa a ter o monopólio da violência legal.

E esta, em última instância, é exercida pelas instituições armadas, constituídas de cidadãos a quem é dado o mandato da defesa, da soberania e da integridade nacional. Ora, ao propor o armamento dos brasileiros, fere-se de morte, tanto o monopólio como o papel constitucional das FFAAs. E invoca-se, conscientemente ou não, o terrível fantasma de uma guerra civil, brasileiros contra brasileiros. Mais armas, a literatura mundial tem consolidado, mais mortes.

A autotutela da cidadania, via armas, desacredita o papel das políticas de segurança, corrói a democracia, e é uma ilusão que sai caro a toda sociedade. Além de adiar o enfrentamento da questão de como reformar o nosso sistema penal e as nossas polícias, para defesa da vida de todos.

Raul Jungmann, Ex-Ministro da Reforma Agrária, Defesa e Segurança Pública.

  *Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC

Comentários

Últimas notícias