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O Sport, o Náutico e a gente boa do Haiti

Jean Pierre era um sobrevivente. Um camaleão. Entendeu muito cedo o jogo do poder.

OTÁVIO SANTANA DO RÊGO BARROS
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OTÁVIO SANTANA DO RÊGO BARROS
Publicado em 19/02/2022 às 0:00 | Atualizado em 19/02/2022 às 7:29
TAMAS JEAN PIERRE / AFP
Terremoto no Haiti - FOTO: TAMAS JEAN PIERRE / AFP
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Jean Pierre se comunicava bem em inglês, espanhol, francês e português. Haitiano, falava créole. A primeira vez que o encontrei foi em 2006. Era uma criança, com uns dez anos de idade. Vivia no portão do ponto forte, puxando assunto com os soldados brasileiros. Fui ao Haiti chefiando uma equipe de inteligência. Lá encontrei um povo carente, mas orgulhoso. Venceram tropas bonapartistas e conquistaram a independência liderados por escravos.

Voltei em 2009 para um reconhecimento. No ano seguinte, comandaria o Batalhão Brasileiro de Força de Paz (BRABAT). Reencontrei Jean Pierre na praça de Cité Soleil - uma favela imunda, dominada por gangues. Não sei se me conheceu ou se fingiu muito bem. Seu português havia melhorado. Estava mais alto, mas parecia ter os mesmos dez anos de idade de quando o vi pela primeira vez.

Em janeiro de 2010, conforme planejado, iniciou-se o rodízio de batalhões em Porto Príncipe. No dia 12, o Haiti sofreu um terremoto devastador. Aos poucos a dimensão da tragédia se revelava. O tremor atingira 7.3 na escala Richter, um sismo de grande magnitude. Estimou-se cerca de 250.000 mortos. As tropas brasileiras também perderam militares sob os escombros.

Três dias depois pousávamos no aeroporto da capital, ou o que dele sobrou. Durante aproximação, da janela do avião, só ruínas. A crise humanitária levou mais de 50 nações a enviarem ajuda em pessoal e material para mitigar o inferno.

Tão logo chegamos na base, saímos para reavaliar as novas condições da área de operações. Quando estacionamos os blindados em Cité Soleil, lá estava Jean Pierre. Perna machucada. O rosto sujo de lama não mudara. Era pele e osso. Ele me disse que perdera parentes e amigos, e precisava de ajuda. Inscrevi Jean Pierre em um programa da ONU que apoiava adolescentes. Passei a ter mais contato com o bon bagay (gente boa em créole). Apaixonado por futebol, ensinei o grito de guerra do Sport: cazá, cazá, cazá...

Quando o encontrava no ponto forte, ele me cumprimentava: cazá, coronel! Sete meses depois, e muitas histórias, estávamos retornando ao Brasil. O futuro comandante, um pernambucano de quatro costados, percorria comigo as vielas próximas ao porto, para tomar pé da situação. Encontramos Jean Pierre ajudando na reconstrução de uma escola. Apresentei-o ao coronel e disse ao bon bagay que o novo comandante torcia por um time chamado Náutico.

Sagaz, Jean Pierre entendeu que a era rubro-negra ficara para trás. Perguntou ao oficial qual era o grito de guerra nos aflitos: N-A-U-T-I-C-O... Meio ano depois, topei com o meu substituto já no Brasil. Disse sorrindo ter convencido Jean Pierre a torcer pelo Náutico. Mas temia que virasse a casaca. Seu sucessor era palmeirense. Jean Pierre era um sobrevivente. Um camaleão. Entendeu muito cedo o jogo do poder. Paz e bem!]

Otávio Santana do Rêgo Barros, general de Divisão da Reserva

 

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