OPINIÃO

O recifense tem uma veia atávica de exaltação da grosseria.

Abandonei Recife. De todas as metrópoles do mundo, Recife é a mais barulhenta. Não chaminés de fábricas, mercados abertos, motores de veículos, mas a desordem ambiental institucionalizada, o inferno da deseducação e da incivilidade

JOÃO HUMBERTO MARTORELLI
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JOÃO HUMBERTO MARTORELLI
Publicado em 25/03/2022 às 0:00 | Atualizado em 25/03/2022 às 11:46
FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM
Protesto dos motoristas de ônibus para o trânsito na AV. Guararapes - FOTO: FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM
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Estou no meu canto. Sozinho. Lendo. Estudando. Ouvindo música. Consigo dormir. Não há barulho, apenas o farfalhar das palhas dos coqueiros e o balanço suave do mar, o sopro da brisa. Como escreveu João, em primorosa síntese poética: Onde eu estava ali era um quieto. No caso dele, um fundo de chácara; aqui, a beira do mar. Ali, como cá, o plenário de passarinhos, o canto se imiscuindo com o silêncio. Nem sempre foi assim, forçado que fui a procurar a reserva.

Abandonei Recife. De todas as metrópoles do mundo, Recife é a mais barulhenta. Não chaminés de fábricas, mercados abertos, motores de veículos, mas a desordem ambiental institucionalizada, o inferno da deseducação e da incivilidade. O recifense tem uma veia atávica de exaltação da grosseria.

Nos bares e restaurantes, fala-se alto, prefere-se a gargalhada ao sorriso polido. Na minha vida adulta, tentei todos os sítios. No Rosarinho, à beira quase do Arruda, rodas de samba e forró se avizinhavam, estrondosas, para uma época em que a amplificação nem estava assim tão desenvolvida. Na Torre, eram as festas do SESC para o público adolescente, que germinavam ali a estupidez do futuro adulto. Boa Viagem, a praia urbana mais linda do Brasil, palco das cantorias evangélicas das sextas à noite, com caixas de som para Deus, lá do alto, ouvir, passando por nós, os intermediários involuntários da prece.

Agora, em Casa Forte, a bucólica, residencial, histórica, bela Casa Forte, ali os bares e restaurantes produzem estado de calamidade pública. O revoltante é que o poder público não aparece, talvez porque, para ele, tem que morrer, ser arrastado pela enchente, cair dos morros; na cartilha da municipalidade recifense, não existe a morte diária do ruído que impede o descanso, o sono, o estudo, a leitura, o sossego dos cidadãos.

Quanta tolice esperar que a prefeitura fiscalize uma coisa tão boba. Às vezes, com as reclamações, à polícia, à secretaria de meio ambiente, tinha-se a impressão de que o bar era avisado antes: Alô, é do bar? Olha, a gente vai aí fiscalizar, baixa o som, meu, senão vai ter multa. E o bar baixava pelo minutinho suficiente para não ter autuação. Quando autuado, defesa administrativa, suspenso o prazo, segue a perturbação, por que interditar, cadê coragem no prefeito?

E daí a pouco retomava aquele barulho de orangotango, homens embrutecidos a exponenciais ruídos guturais, batendo no peito e cantando parabéns para o agraciado do dia, ao final da cantoria com aquele refrão: é rola, é rola! E nem era o passarinho, era só bestialidade. A vizinhança, famílias, crianças, idosos, cidadãos, as vítimas, privadas do direito ao silêncio. Não é preciso ficar calado, basta respeitar os decibéis diurnos e noturnos, tem lei, não tem é prefeito, nem secretário, nem fiscal, tem só amigo de vereador nessa indústria destruidora.

Ainda bem que me livrei, fico aqui: Onde um lugar - os quietos curtos horizontes, o tempo um augúrio ininterrupto - que merece demorada. A inteira alma. O nomezinho de Deus, no bico dos pássaros (meu xará é Guimarães, o Rosa).

João Humberto Martorelli, advogado

 

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