De quantos esquecimentos uma vida precisa para se dar sentido e continuidade?
No livro de J. E. Agualuza, "Teoria Geral do Esquecimento" (Foz, 2015), Ludovica, ou Ludo, portuguesa residente na Angola que acaba de se libertar da dominação colonial, ergue uma parede separando seu apartamento do resto do edifício. Isolada do mundo, ela inventa histórias mirabolantes, imagina encontros improváveis, mas o que ela quer mesmo é esquecer os sofrimentos provocados pela longa guerra de libertação, e quer, sobretudo, ser esquecida por todos: um livro sobre o medo do outro!
Nosso acadêmico Cícero Belmar (APL) coloca uma questão semelhante em seu recente "O livro das personagens esquecidas" (Cepe, 2022): que fatos, pessoas, afetos, passados, lugares... precisamos esquecer para que a vida possa ser tecida de forma a constituir uma história aceitável, articulada, de maneira a que o presente seja a culminação de um passado por sua vez retrabalhado e reconstruído pela memória? É disso que trata o livro de Cícero Belmar.
-"Esqueça que viu o Pe. Henrique ser seqüestrado, ou voltaremos aqui!". -"Esqueça que ouviu dois companheiros ouvindo a Rádio Nacional de Cuba!". -"Esqueça que não foi feliz e se fabrique um passado!". -"Deixe que a memória apague o nome deles, mas tatue o corpo para que a pele não esqueça!". "Descobri tardiamente que nós também somos aquilo que contribuímos para esquecer!". "Vão-se os dentes de ouro (dos mortos que um coveiro desenterra para roubar), ficam as memórias das almas!". "- Esqueça que participou de um almoço no Recife com Fidel Castro, Arraes e Francisco Julião.
Nunca fale disso pra ninguém!". "- Quero ser esquecida!" (Greta Garbo)... são alguns dos exemplos das personagens que povoam este inquietante e surpreendente livro, construído por um autor em pleno domínio da arte do conto breve.
Mas o que faz um autor, ou o que move um escritor, como Cícero, a registrar em contos essa difícil arte do esquecimento? Não sei se há recortes autobiográficos na obra, já que Cícero trata da "lembrança dos outros", agora tornados personagens! Mas o fato é que há, em diversas passagens de nossas vidas, monstros e fantasmas que habitam o subsolo de nossas lembranças e que nós esperamos que eles não subam à superfície, nem em sonho, nem em lembrança, nem em conversas.
Mas há, também, aqueles que conseguem perdoar os monstros, que conseguem esquecê-los e, até, aqueles que conseguem fazer da dor monstruosa que nos foi infligida, narração: COMO SE ESCREVER FOSSE LEMBRAR DAQUILO QUE PRECISAMOS ESQUECER PARA QUE NÃO SUBA À SUPERFÍCIE! Afinal, diz Cícero, "o inferno é o excesso de lembranças!".
Flávio Brayner, professor titular da UFPE
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