A penalização do aborto subtrai da mulher a autoridade sobre o seu corpo
Tudo é sobre se colocar no lugar do outro. O mais, com a licença da franqueza, não passa de espuma. Nada constrói.
O aborto é exceção. Não a regra. Deixa marcas que o tempo é incapaz de apagar.
Invariavelmente os julgamentos de cunho moral-religioso ignoram que, ao fim, é da mulher e de mais ninguém o ônus de carregar o fardo da violência suportada. Na vítima nem todos pensam. Mais cômodo é atirar a primeira pedra.
Há décadas o aborto necessário (para preservar a vida ou a saúde da mulher) e o humanitário (decorrente de estupro) não precisam de autorização estatal. Não são crimes. Daí a importância do contraponto ao édito condenatório da danação eterna impingido a quem espera acolhimento e não nova violência.
Alberto Barros Lima (Conjur, 29/6/2022), resume bem: “Confundindo políticas públicas com ortodoxias, identitarismos, intolerâncias e contando com a desinformação de parcela significativa da população, o debate sobre o aborto — um problema ético difícil — quase sempre resvala para a pior perspectiva: a hipócrita. (…) a discussão sobre o tema derrapa para manifestações raivosas, obtusas e de "cancelamento" (ficou comum no Brasil)”.
O feto é despossuído de racionalidade e autoconsciência. Não é pessoa. Que outro caminho o Direito haveria de trilhar senão resguardar os interesses da gestante cuja vida corre risco e daquela vitimada pelo estupro? Retirando-lhes a dignidade, o protagonismo, a liberdade de consciência?
Cito Ferrajoli (Conjur, 25/11/2020): “Ao lhe impor a obrigação de ser mãe contra a sua vontade, a mulher é transformada em um recipiente”. Daí o equívoco da revogação do precedente Roe v. Wade pela Suprema Corte dos EUA, o qual vigorava desde 1973, mesmo que não tenha acabado com a possibilidade do aborto.
Indaga então, Luíza Nagib Eluf (Conjur, 22/06/2022): “Até quando a hipocrisia patriarcal irá prevalecer sobre os direitos humanos?”. Reside nisso nó górdio da discussão. De novo, Ferrajoli: “A penalização do aborto subtrai da mulher autonomia e autoridade sobre o próprio corpo e, com elas, sua dignidade de pessoa”.
Tudo é sobre se colocar no lugar do outro. O mais, com a licença da franqueza, não passa de espuma. Nada constrói.
Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado