OPINIÃO

As invasões bárbaras

Confira o artigo de Dayse de Vasconcelos Mayer, doutora em ciências jurídico-políticas

DAYSE DE VASCONCELOS MAYER
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DAYSE DE VASCONCELOS MAYER
Publicado em 18/12/2022 às 0:00 | Atualizado em 18/12/2022 às 13:01
Thiago Lucas
Democracia - FOTO: Thiago Lucas

Há filmes que desafiam o tempo. São dotados de temporalidades distintas que se conectam no presente. É o caso de "as invasões bárbaras", dirigido por Denys Arcand. O diretor, quebequense ou "québecois", consegue realizar a releitura dos erros humanos do passado na busca dos acertos do presente, sinalizando que na vida tudo acontece no "agora".

O enredo tem como pano de fundo duas gerações em fricção: Rémy - historiador, professor e socialista na década de 60, vítima de um câncer terminal e internado num hospital superlotado da rede pública de Quebec - e o filho Sébastien - nascido nos anos 60, profissional do mercado financeiro internacional e com residência em Londres.

À beira da morte, Rémy não se liberta dos equívocos do socialismo e nada intui acerca do crepúsculo da esquerda. Por isso mantém os olhos cegos para as simulações e dissimulações do filho com o objetivo de sustentação das suas utopias.

Um dos mitos presentes é o da amizade incondicionada. Para Rémy - e também Arcand - as ligações afetivas são ilusórias, romanescas e alimentadas pela moeda de troca. De igual modo são imaginárias as crenças sobre o bem-estar da classe média e pobre, a igualdade social, a assistência médica gratuita e de qualidade.

Todavia, ao realista/pragmático se permite a aproximação, mesmo irreal, do idealismo de modo a converter, momentaneamente, a ficção em realidade. Tal ocorre em dois momentos: quando Sébastien paga aos ex-alunos do pai para uma visita ao doente; quando remunera, ocultamente, o nosocômio para obtenção de cuidados exclusivos ao doente.

Temos aí um impasse: seria correto reforçar as crenças políticas e a ideologia do genitor para confirmar que tudo valeu a pena? Os fins justificariam os meios utilizados? A aproximação entre duas gerações só é possível acontecer por meio do embuste?

Eis a justificativa possível: quando o filme foi realizado, Arcand, com 62 anos, desejava comunicar, além da ascensão hegemônica do capitalismo globalizado, o poder do dinheiro, a prática generalizada da corrupção, a desonestidade dos políticos, a multiplicação das máfias financeiras e as perspectivas pouco otimistas da democracia do presente. Tal contexto foi retratado no livro "Democracia Capturada", por mim escrito.

Em síntese, somos levados à conclusão de que o conceito de democracia sucumbe sempre às palavras hipocrisia, secreto e disfarce. Nessa conjuntura, as percepções acerca da soberania do povo e de constituição seriam, igualmente, meros disfarces.

Dayse de Vasconcelos Mayer é doutora em ciências jurídico-políticas.

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