Entre tantos temas indigestos, que espezinham, porque escancaram mazelas incrustadas na sociedade brasileira, a proteção aos direitos indígenas ganhou projeção nas últimas semanas, não por bons motivos. Uma crise humanitária atinge os Yanomami: o colapso sanitário que gera imagens impactantes é, na verdade, a evidência da incapacidade do Estado de gerir políticas de proteção aos povos originários, deixando-os suscetíveis a políticas de governos, ora mais complacentes com a exploração das terras para a prática de garimpo, ora com discurso mais protecionista mas, na prática, ineficaz.
A questão é que o governo Bolsonaro não fazia questão de esconder a sua postura e abertamente se posicionava contrário à demarcação das terras, por exemplo. Agora, revelada a tragédia, é a hora das desculpas e do jogo de empurrar a culpa para o colo de outrem. Desta vez, dada a proporção e repercussão dos fatos, a pressão institucional, inclusive na Corte Internacional de Direitos Humanos, busca encontrar os responsáveis pela invasão sem precedentes de garimpeiros nas terras Yanomami, impactando todas as possíveis formas de proteção.
A violência armada, fruto da associação nefasta entre garimpo, facções criminosas e narcotráfico, é a realidade com que essa população se depara em seu ambiente. A exploração do ouro, por outro lado, é uma atividade que dissemina mercúrio, substância com alto grau de toxicidade e que agrava o quadro de saúde de uma comunidade fragilizada pela desnutrição. A presença dos garimpeiros, além disso, é vetor de diversas enfermidades. Tudo isso requer ação orquestrada do Estado, como um dever constitucional.
Os dados são estarrecedores. De acordo com o Mapbiomas, uma rede colaborativa, formada por ONGs, universidades e startups de tecnologia que produz mapeamento anual da cobertura e uso do solo no país, 59 mil hectares foram atingidos por novas áreas de garimpo de 2017 a 2021 (ano recorde). Em 2019, primeiro ano do mandato de Bolsonaro, foi apresentado projeto ao Congresso para liberar a mineração e outras atividades de alto impacto ambiental dentro de terras indígenas. A medida não foi aprovada, mas denúncias feitas pela Funai apontaram que militares do Sétimo Batalhão de Infantaria da Selva tinham parentes entre os garimpeiros e vazavam a eles o planejamento de operações contra o garimpo.
Lavras garimpeiras foram autorizadas pela primeira vez na história em Roraima, em áreas vizinhas à Terra Indígena Yanomami, abrindo os caminhos para a contaminação da comunidade local. A própria Funai foi frontalmente desmontada em sua capacidade de realizar a proteção para a qual existe. Surtos de malária e verminoses resultaram da desassistência. As mortes de 570 crianças com menos de 5 anos, nos últimos quatro anos, foram por causas evitáveis.
Tudo isso leva à conclusão de que não foi apenas um descuido, ou fruto de um processo cumulativo de governos anteriores, a situação do povo Yanomami. Se historicamente o Brasil trata os povos originários a partir de uma lógica que transita entre a tragédia e o esquecimento, agora temos a oportunidade de dar um basta à tanta desumanidade. Não se trata, mais uma vez, de ser de direita ou de esquerda, governo ou oposição. Combater o extermínio de populações deveria ser consenso entre nós, porque se nem isso nos restou como projeto de civilização, mais do que superar polarizações políticas, precisamos nos re-definir como sociedade. A barbárie não nos edificará, sob hipótese alguma.
Priscila Lapa, cientista política
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