30/outubro/2022 trouxe antecipação do processo de fechamento, no Brasil, do ciclo de negacionismo sob a batuta do poder presidencial. Os eventos de 12/dez e 08/jan/2023 foram picos de distúrbio, em Brasília-DF, por hordas de negacionistas que clamam por "liberdade" ao mesmo tempo em que alardeiam o objetivo de destruir a democracia. O líder vestiu-se de silêncio, amuo e aparente desgosto, e de fujão não-passador da faixa presidencial. Não parou de fazer o de sempre em quatro anos: preparação de um desejado caos que justificasse uma intervenção das Forças Armadas. E, do que já se sabe sobre os distúrbios de 08/jan, houve planejamento, com insuficiente mobilização da policia militar, com alguns de seus membros confraternizando com os manifestante-vândalos e tirando fotos, e omissão do Batalhão da Guarda Presidencial, além de envolvimento de militares da ativa (FFAA) no acampamento frente ao Quartel Geral de Brasília e nas manifestações. Sinais particulares cuja relevância não deve ser minimizada. Indícios fortes de tentativa de Golpe de Estado.
O fato é que a eleição presidencial marcou a oportunidade e o imperativo de uma transição política. Com a pesada carga de reconstrução do país, e de recomposição do sentimento de Nação - sem o vezo do 'bem contra o mal', do 'nós contra eles', da ferrenha contraposição entre extremos. O Presidente eleito deveria deixar bem claro, para a sociedade, que compreende e leva em conta tais qualificações e o contexto (nacional e internacional) em que o país se insere. Necessário que se mirem o imediato e exigências econômicas e políticas destes próximos quatro anos. Mas, sem se perder de vista o extensivo além de 2026. Vamos precisar de pelo menos 16-20 anos - sob democracia plena - para voltar a ver o país com crescimento sustentado. Com a Nação recomposta. E com as relações entre poder civil republicano e FFAA livres de ambigüidades, de senões, de fantasmas, uma real República. Instituição que, aos 133 anos, segue inacabada.
Isso posto, entendo como óbvio que o exercício de reconstrução pressupõe avançar com críticas. Um primado que, na verdade, é princípio básico. Sem qualificações categóricas de possível fiasco, de 'julgamento final'. Tampouco com excessiva condescendência, deixando-se a construção do "pacto político-social" como obra apenas de governo - ator próprio para liderar, sinalizar e coordenar uma tarefa que é essencialmente de um coletivo.
Acredito que seria um autoengano se satisfazer com Alckmin na Vice-Presidência como garantia de um arranjo político satisfatório. O acerto entre Presidência e partidos, até agora, está mais para negociatas do quase-imediato, com forte conotação eleitoral de olho em 2026. O peso político do componente eleitoral é parte natural do processo, mas não é algo a que se deve sucumbir. Não esquecer que a economia e as demandas sociais são balizas que podem afetar fortemente o arranjo político, positivamente ou como fator adverso. Ademais, são nítidos os traços de ativismo e permanência das forças associadas aos distúrbios de 08 de janeiro.
E aqui elenco o que seria qualificação de urgências a ser enfrentadas. E haja solavancos [o catabil ou os catabis da minha infância na Paraíba].
Primeiro, o déficit fiscal. O Ministro Haddad anunciou propósito de transformar um estimado déficit de mais de R$ 230 bilhões (2023) em superávit superior a R$ 11 bilhões. Depois, prevendo possíveis casos de frustração de receitas, aludiu a uma redução da relação déficit/PIB (2023) de 2,1% para 1%. Isso corresponderia a um buraco fiscal ao redor de R$ 100 bilhões. A respeitada Instituição Fiscal Independente (IFI) sugere redução do rombo fiscal para 1,3% do PIB, neste ano. Nesse cenário, projeta a relação dívida/PIB para 77,8% em 2023, e cerca de 80% em 2024. De todo modo, variadas estimativas - mesmo diferentes, de fontes diversas - apontam para situação desconfortável. Transparência e compromisso claro - no discurso governamental - são peças importantes. E reconhecimento eloqüente de que o enfrentamento do déficit social pressupõe contas públicas no caminho do equilíbrio.
Segundo, o passo de reformas institucionais, que deveria assegurar a esperada reforma tributária ainda neste ano, pelo menos. Ademais, captação de recursos via redução de gastos com estatais inúteis, inclusive um programa claro e consistente de privatizações. Como isso é muito delicado, deve permanecer fora de pauta, considerado o que pensam, a respeito do tema, o presidente e o Ministro Haddad. Este acena para PPPs (parcerias público-privadas), uma alternativa complementar, que não substitui privatização inteligente e submetida a adequada regulação. Causa espécie o atraso da esquerda nessa área. Ecoando tal viés, o presidente esbraveja contra privatização, e coerentemente mantém a EBC (Empresa Brasileira de Comunicação), criada em 07/04/2007 (2º mandato dele) e acolhida pelo governo agora substituído. O único benefício desse cabide de empregos foi o fracasso, não alcançando pontos relevantes de audiência, pouco importando como propaganda e doutrinação política. Afinal, canais mais efetivos para tal estão nas redes sociais, sustentáculos da horrenda guerra retórica e de fake news.
Terceiro, a seara da política externa. Economia internacional em compasso de crise, mesmo com a inflação dando sinais de desaceleração. A contenda Rússia-Ucrânia impactando na geopolítica e alimentando incertezas. Por que erigir o Mercosul, em permanente estado embrionário, como bandeira de uma "união" na heterogênea América Latina? A pressa de anúncio de financiamentos do BNDES em obras (de empresas brasileiras) em países vizinhos recupera componentes com cheiro de enxofre. Afinal, não se pode dizer que tudo descortinado pela Lava-Jato foi ficção produzida por conspiradores... E não consta que o Presidente da República seja dono do BNDES, para projetar decisões de investimento sem qualquer avaliação de custo/benefício.
Por fim, a corrosão no tecido militar. Leio no O GLOBO de 29/01/2023: 'Nas redes sociais, militares propagam mensagens que atacam Lula, ... e questionam lisura do processo eleitoral'. Além disso, a já mencionada participação de militares em manifestações que pedem Golpe de Estado. Tudo isso é impedimento legal para militares na ativa, que nunca deveriam se meter em política. Manifestação política de altas patentes, sem o contraponto da punição, é senha para as bases. A reportagem deixa claro que a corrosão via venenosa polarização baseada no fantasma do comunismo avançou muito e chegou a franjas maiores das FFAA.
Um discurso presidencial com cheiro de palanque (para quem e para o quê?) serve como cereja no bolo de aguerridas hostes dispostas a persistir na lida da anti-democracia, mantendo a polarização do 'bem contra o mal'. E passos errados na economia, nem pensar!
Tarcisio Patricio, doutor em Economia, professor da UFPE (aposentado).
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