O professor de filosofia da Universidade de Veneza, Umberto Galimberti, que citei algumas vezes aqui, afirma em um de seus livros o seguinte: “A essência do homem é a técnica!”. Ora, a ideia de ESSÊNCIA (um tema caro à Metafísica) supõe que temos algo que não depende de circunstâncias ou contingências e que pode se “materializar” em seres singulares e empíricos. Por exemplo: a essência do BELO, algo completamente abstrato, pode se encarnar numa pessoa que achamos “bonita” e que, um dia, deixará de sê-lo e que vai morrer. Mas a “idéia” (ou a essência) do Belo não morrerá com ela: permanecerá para além daquela contingência individual.
Assim, supor que a “essência do homem é a técnica” significa que aquilo que faz com que sejamos o que somos – e não uma outra coisa- independe das condições históricas ou sociais, e para Galimberti isso seria a TÉCNICA! Vejam bem: não se trata de uma qualidade “interior” - como a racionalidade (a idéia de que “O homem É um animal racional”. O “É” mostra a essencialidade), mas algo “exterior” feita de artefatos, ferramentas, utensílios, etc.
Galimberti explica sua curiosa tese: todos os outros animais dispõem de INSTINTOS altamente desenvolvidos que lhes permitem sobreviver, reproduzir, fugir do perigo, proteger os filhotes, escolher parceiros.., mas o Homem não! Foi exatamente porque ele inventou instrumentos e ferramentas que ele se fez HOMEM, quer dizer, separou-se do mundo instintual dos outros animais, produziu a cultura e adquiriu as características humanas: o Homem é o que se fez a si mesmo pela técnica (Marx dizia que “A raiz do homem é o próprio homem!”). É isto que Galimberti quer dizer com aquela frase.
Nossa inteligência, por exemplo, é um recurso múltiplo e variado que envolve emoções, cálculos, relações, memória, afetos, lógicas, conhecimentos, habilidades, linguagem, etc., e que nós supomos que seja algo “interno”, que já nascemos com ela e até herdamos geneticamente (“Puxou ao pai: é tão inteligente quanto ele!”). A inteligência, nesse caso, seria “natural”, contida na nossa “natureza humana”. E até alguns filósofos que trabalharam com educação, como Jacques Rancière, em seu livro “O Mestre Ignorante” advogam que, ao invés de a educação desejar, ao FIM DO PROCESSO, obter igualdade social ou libertação da opressão, deve PARTIR DA IGUALDADE de INTELIGÊNCIAS desde o INÍCIO. Isso não quer dizer que todo mundo tem inteligência igual, aferível por psicometrias (QI): quer dizer que todos nós temos a capacidade de nos compreender, de “inteligir” (tornar compreensível) a partir de uma linguagem comum ou traduzível e partilhar o que pensamos e percebemos do mundo.
O problema, para mim, é que a nossa “inteligência” já produziu, claro, os Da Vinci e os Einstein, mas provocou também inúmeros desastres, holocaustos, ecocídios, guerras, etnocídios..., e se eu tenho uma suspeita com inteligências “NATURAIS”, imaginem com as “ARTIFICIAIS”! A Inteligência Artificial (AI) é algo verdadeiramente interessante porque aquilo que deveria “estar em nós” (nossa inteligência) é projetado para algo “fora de nós” (um robô, uma máquina qualquer), como um Deus que quer criar um outro ser à “sua imagem e semelhança”! Daqui a pouco estará chegando o tempo da “Emoção Artificial (AE)”!
Apareceu, há umas duas semanas, um tal de ChatGPT, fruto da OpenIA de Elon Musk (tão bonzinho esse rapaz!): uma Inteligência Artificial que gera textos a partir de um comando e até escreveu um artigo para o The Guardian! Ele (vejam que já o estou tratando como pessoa!) se diz “incapaz de criar coisas novas, apenas interpreta e esclarece sobre a base do que já sabe”. Dizem que vai superar o Google e eu resolvi pedir-lhe (ao GPT) que escrevesse um artigo pro JC e sugeri um tema: o principal implicado no maior escândalo contábil brasileiro (o das Lojas Americanas), Jorge Paulo Lemann, é também o maior investidor em educação privada no Brasil.
GPT me mandou gentilmente o seguinte texto:
“Não posso dizer com certeza, mas não há relação visível entre educar e trambicar, embora a maior parte de nossos trambiqueiros nacionais tenha excelente educação escolar. O importante é saber que as Lojas Americanas e o modelo educacional da Fundação Lemann são quase a mesma coisa: você pega um carrinho na entrada, passa nas gôndolas, deposita conteúdos (os conteúdos estão etiquetados na entrada dos corredores: EMPREENDEDORISMO, EDUCAÇÃO FINANCEIRA, FLEXIBILIDADE, ESPÍRITO DE EQUIPE, INSERÇÃO NO MERCADO, COMPETITIVIDADE LIBERAL, CONSUMO CONSCIENTE...), passa no caixa – a parte que mais interessa aos investidores- e sai. Claro, os acionistas que apostam neste modelo, assim como os Governos e Prefeituras, terminarão em conflito não com o Ministério da Educação, mas com a Comissão de Valores Mobiliários e a BOVESPA. São projetos formadores de “subjetividades adaptadas”(!) ao nosso tempo e, sobretudo, complementares: de um lado forma o empreendedor/consumidor consciente e do outro a Loja onde gastar... conscientemente! Espero ter correspondido às suas expectativas”, concluiu GPT.
Confesso que fiquei emocionado: agora sei que minha “essência” é técnica e a “essência” de ChatGPT é... humana! QUE INTELIGÊNCIA! O problema é descobrir mais tarde que essa minha emoção é... artificial!
Flávio Brayner, professor Emérito da UFPE
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