Para quem está de fora, o dia a dia de uma instituição sui generis como a OAB, movida pelo signo do voluntariado, desapartada de qualquer dos Poderes, cujos cofres, aliás, não a subsidiam, pode parecer desinteressante.
Mas o certo é que, sem a advocacia, regulada exatamente pela OAB, o cidadão não atinge a defesa dos seus interesses em juízo. A postulação (como regra), a consultoria e a assessoria jurídicas, por lei, só pelo advogado podem ser prestadas. Lado outro, o advogado simboliza mais que a voz do seu cliente, tanto quanto a OAB simboliza mais do que um cartório de registros.
A experiência nos Conselhos Seccional e Federal me traz hoje a segurança de concluir ser inegável como a própria sociedade dimensiona mal a relevância da OAB e o papel do advogado na topografia do Estado Democrático de Direito.
Tome-se o exemplo do Exame de Ordem. Admita o leitor que, em sã consciência, jamais aceitaria para si uma má assistência jurídica. Como, então, não reconhecer na exigência em comento uma salvaguarda de interesse geral? Como compreender que nenhuma passeata ou campanha de abaixo-assinado ou mesa
redonda em programa de tv de grande audiência chame para si essa causa?
Para Mark Twain, “não nos libertamos de um hábito atirando-o pela janela: é preciso fazê-lo descer a escada, degrau por degrau”. Com o Exame de Ordem acontece o mesmo, na perspectiva da resposta aos seus críticos, que o culpam pela paisagem de um ensino jurídico mercantilizado e descontextualizado socialmente, refém de um modelo expositivo, sem pendor algum para o críticoreflexivo, e que presume, em síntese, que basta conhecer a norma, mas não as razões para que ela exista. Críticos que ignoram que a experiência jurídica em si mesma é plural, como plural é o significado da palavra Direito.
O Exame de Ordem existe exatamente em atenção ao interesse coletivo, a partir das diretrizes da Constituição. Foi ela quem claramente fez a escolha pela impessoalidade como pedra de toque do processo de formação do funcionalismo estatal, conceito que aproveita à missão outorgada à OAB de selecionar e preencher o seu cadastro de inscritos (atualmente acima de 1.300.000).
Muito se fala na crise do ensino do Direito. Trata-se de uma realidade. Tão gritante quanto o aquecimento global. O conhecimento jurídico vem sendo transmitido de maneira fria, objetora da crítica, como um saber pronto e acabado, incapaz de abranger toda a complexidade da vida humana e seus conflitos.
Privilegia a repetição e a memorização para posterior avaliação, tornando a sala de aula um lugar de narração e não um palco de debates. O Exame de Ordem, inserido nesse panorama, é um espelho disso tudo, não a imagem que reflete.
Nenhum choque com a liberdade fundamental para o trabalho. Nada obstante, foi exatamente sob esse pretexto que chegou aos escaninhos do STF. Entrou na lista de outras discussões que jamais deveriam tomar o tempo de uma Corte Constitucional, como a subtração de duas peças de queijo ou de uma bicicleta ou de dois xampus ou de R$ 40 de um vendedor de lanches. Mas a discussão aconteceu em 2011, no Recurso Extraordinário (RE) 603.583/RS. Queria o recorrente buscar ver reconhecida a inconstitucionalidade do Exame de Ordem. Ao final, não convenceu um único Ministro.
Habitássemos em um mundo ideal, o aludido julgamento não aconteceria. Nem haveria por que tratar do filtro da sua eventual repercussão. Bastaria o bom senso para impedir que algo como o Exame de Ordem, instrumento aferidor de saberes básicos para a defesa do direito alheio, sofresse esse constrangimento.
Diante do mesmo motivo, dificilmente como visto em 2007 o Projeto de Lei 2.426 seria proposto por aquele que, mais tarde, chegou a presidir a República. Nem em 2010 o então Presidente da Câmara teria incluído a extinção do Exame de Ordem em projetos de lei versando sobre outras temáticas. Jamais, enfim, se cogitaria da extinção da própria OAB, relegando ao “mercado” a seleção desses profissionais.
Por muitos motivos é um desserviço gastar energia mental para expurgar o Exame de Ordem da legislação. Pelo contrário: todas as profissões deveriam ter ferramental do tipo. O Exame não é sequer o “suspeito de sempre”, mas a corporificação do interesse público e isso lhe basta. Como o mensageiro de boafé, ele não traz sobre os ombros culpa, pois crime algum cometeu.
Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado
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