OPINIÃO

"Dai-lhes vós mesmos de comer"

Nesta Campanha da Fraternidade, o lema é a palavra que Jesus dá aos discípulos: "Dai-lhes vós mesmos de comer" (Mt 14, 16).

DOM FERNANDO SABURIDO
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DOM FERNANDO SABURIDO
Publicado em 23/02/2023 às 23:47
FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM
A questão social é o coração do evangelho de Deus, que quis salvar as pessoas não isoladamente e sim como povo e a partir do amor social... - FOTO: FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM

É este lema que motiva a Campanha da Fraternidade 2023, mais uma vez com a proposta do tema "Fraternidade e Fome", que já foi, de certa forma, tema da CF 1975 e CF 1985. Desta vez, como bem ressalta o Texto-base, é praticamente a continuidade do XVIII Congresso Eucarístico Nacional, realizado em nossa arquidiocese de 12 a 15 de novembro de 2022 que teve como tema: "Pão em todas as mesas".

O texto-base parte da meditação de Mateus 14, 13-21, no qual Jesus realiza o que comumente a tradição chamou de "multiplicação dos pães". Ao reler, agora, este texto, talvez desejássemos que, no mundo atual, Jesus viesse refazer o milagre da multiplicação dos pães. No entanto, o problema do mundo e também do Brasil não é a falta de alimentos e sim a sua distribuição injusta. Em nosso país, não adiantaria multiplicar os alimentos, se a pequena elite de "10% de brasileiros continua se achando no direito de se apoderar de 90% da riqueza nacional" (Cf. Texto-base n. 55 p. 36). De fato, a fome não é consequência de flagelos naturais, nem é uma fatalidade. É decorrência do modo de organizar a sociedade.

De fato, desde 2020, em todo o mundo, a organização injusta e a incidência da pandemia exacerbaram as desigualdades sociais. De acordo com pesquisa recente, na África, 123 milhões de pessoas se encontram, hoje, em situação de emergência alimentar aguda, o que significa que nos últimos dois anos, são mais 28 milhões de seres humanos que passaram a sofrer o flagelo da fome (Cf. La Croix, vendredi, 13/01/2023, p.10). No Brasil, "há 125,2 milhões de brasileiros/as que nunca sabem quando terão a próxima refeição" (CF-2023, Texto-base, n. 31, p 25). Acompanhamos, recentemente, através dos meios de comunicação, a dolorosa situação dos irmãos índios Yanomami, em Roraima. O Conselho Missionário Indigenista - CIMI, vinha denunciando o problema e fazendo o que era possível através da imprensa a que tinham acesso, porém, somente agora, graças à visita do presidente da república, o assunto veio à tona mais fortemente e chamou a atenção do Brasil.

As raízes desta calamidade são muitas e vêm de longe na história. Desde os tempos da colônia, a estrutura fundiária garante a concentração de terras nas mãos de uma pequena elite. Cada dia mais, a política agrícola coloca a produção a serviço do sistema econômico-financeiro. De tudo isso, resultam a perversidade da política salarial e o desemprego. (pp 30-35).

É triste recordar que, no passado, as Igrejas não combateram fortemente essa ordem social injusta e até hoje há grupos cristãos e mesmo católicos que continuam a separar fé e vida. Não percebem que estão defendendo políticas baseadas no ódio e na violência que, em nome de Deus, aumentam a fome e as desigualdades sociais.

No tempo de Jesus, os religiosos do templo achavam que nada tinham a ver com a fome do povo. Por isso, o quarto evangelho, ao contar esse episódio no qual Jesus alimenta uma multidão, começa afirmando que "estava próxima a Páscoa dos Judeus e no lugar de ir celebrá-la em Jerusalém, Jesus vai ao deserto onde alimenta o povo como Deus tinha dado o maná ao povo hebreu no deserto" (Jo 6, 1- 14).

Nesta Campanha da Fraternidade, o lema é a palavra que Jesus dá aos discípulos: "Dai-lhes vós mesmos de comer" (Mt 14, 16).

Na nossa realidade atual, o primeiro desafio é como ajudar os irmãos e irmãs da própria Igreja a acolherem essa palavra de Jesus como dirigida a cada um de nós e a cada comunidade eclesial. Precisamos com urgência compreender que o compromisso social transformador não é adendo ou mero suplemento à missão da Igreja e sim, como insiste o papa Francisco, o próprio núcleo da missão. A questão social é o coração do evangelho de Deus que quis salvar as pessoas não isoladamente como indivíduos soltos e sim como povo e a partir do amor social que o Espírito nos inspira (Evangelii Gaudium n.178- 184). As palavras de Jesus "Tive fome e me destes de comer" são, a cada ano, lembradas, no evangelho lido na primeira segunda-feira da Quarema para que não possamos desligar a celebração da Páscoa dessa preocupação com a vida e a segurança alimentar de todos os filhos e filhas de Deus.

Dom Antônio Fernando Saburido, OSB, arcebispo de Olinda e Recife

 

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