Nunca é demais ressaltar que a Lei Federal nº 13.964, de 2019, a denominada Lei Anticrime, que foi aprovada com base em propostas legislativas apresentadas por Alexandre de Moraes e Sérgio Moro, ex ministros da Justiça e Segurança Pública nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, cujas proposições foram aprimoradas pelo Parlamento e que entrou em vigor em 23.01.2020, sem dúvidas, produziu uma profunda reforma nas leis penais do país, máxime no Código Penal de 1940, no Código de Processo Penal de 1941 e na Lei de Execução Penal de 1984. Outras leis criminais também foram alteradas pela Lei Anticrime, com significativas modificações, as quais ainda serão tratadas neste espaço, no correr dos dias, considerando o número elevado de apelos por parte, principalmente, de estudantes de Direito e abnegados, que sublimemente manifestaram interesse na continuidade das análises das matérias aqui suscitadas. Em comentários anteriores, já tratamos das principais mudanças realizadas no Código Penal de 1940, mas nem todas elas foram abordadas, daí porque, hoje, voltamos a insistir no tema e em outras mudanças produzidas pela Lei Anticrime, relativamente à Lei Penal de 1940.
De preâmbulo, vale recordar que embora as mudanças tenham sido importantes, o ideal seria a aprovação de um novo Código Penal, notadamente quanto à sua Parte Especial, que praticamente é a mesma desde a aprovação do velho Código de 1940, cujo projeto, infelizmente, encontra-se no Congresso Nacional há mais de 10 (de) anos, sem que haja a sua aprovação, embora a proposta final já tenha sido por demais discutida e analisada por grandes penalistas do Brasil e até por parte de juristas internacionais, como é o caso do argentino Raul Zaffaroni, que basicamente aprovou o modelo proposto.
Antes da reforma de 2019, o tempo máximo de cumprimento da pena privativa de liberdade permitido era de 30 (quinta) anos. Com a modificação introduzida no art. 75 do Código Penal, o tempo máximo passou a ser de 40 (quarenta) anos. Fica claro, por isso, que alguém condenado a 100 (cem) anos de privação de liberdade, só será obrigado a cumprir 40 (quarenta) anos. Na prática, como juiz de Execução Penal por 15 (quinze) anos, nunca vi alguém cumprindo pena privativa de liberdade por mais de 20 (vinte) anos, seja porque gozou dos benefícios da Lei de Execução Penal, seja porque não conseguiu conviver num ambiente sem médicos, medicamentos e sem enfermagem, dando causa a doenças graves e até à fatalidade vivencial.
O instituto do livramento condicional, um dos mais antigos da história penal da humanidade, e talvez o mais utilizado do mundo, até hoje, como fonte de reinserção social, com a reforma, foi deveras dificultado para a sua obtenção. Nos crimes comuns, antes da mudança, era exigível do condenado o cumprimento de pelo menos 1/3 (um terço) da pena, se não reincidente ou 1/2 (metade) do total da pena, se reincidente, desde que apresentasse bom comportamento carcerário. Se o crime, entretanto, fosse na forma hedionda (grave), o tempo de cumprimento exigido era de 2/3 (dois terços) da pena, mas, se o apenado fosse reincidente em crimes hediondos, o livramento condicional do criminoso era proibido. Observa-se, pelo visto, que a aquisição do livramento condicional já era por demais exigente, num país com mais de 950 mil pessoas detidas, Com a mudança operada pela Lei nº 13.964, que pode ser exigida àqueles quem tenham praticado crimes a partir de 23.01.2020, pois a lei penal não pode retroagir senão para beneficiar o réu, deu-se o acréscimo da necessidade de o apenado comprovar o não cometimento de falta grave nos últimos 12 (doze) meses, bom desempenho no trabalho que lhe foi atribuído e, finalmente, demonstração de aptidão para prover a própria subsistência mediante trabalho honesto.
A bem da verdade, o desempenho no trabalho do preso e a sua aptidão, devem ser avaliados pelo próprio sistema prisional onde o apenado cumpre a pena, sabendo-se que o labor carcerário, hoje, é um direito do preso e uma obrigação do Estado. Não é mais possível imaginar uma administração penitenciária que não ofereça ao detento - provisório ou condenado - o direito ao trabalho, remunerado, porque o trabalho prisional além de evitar a ociosidade, contribui para a produção, profissionalização e educação do recluso, consagrando a sua dignidade humana, preceito constitucional por demais esquecido em relação às classes menos favorecidas.
O que é certo é que o livramento condicional se tornou ainda mais inacessível aos condenados brasileiros, com a mudança, seja porque os requisitos para a sua obtenção foram majorados, seja porque o critério do bom comportamento carcerário, aptidão e desempenho convincente para o trabalho, serão sempre provenientes de declarações emanadas da administração prisional, que nem sempre são comprovadas pela autoridade judiciária competente para a analisar o benefício.
O livramento condicional, para quem não sabe, é parte integrante da obrigação do Estado e da sociedade em recuperar o condenado que eventualmente tenha burlado a paz social, mas que necessita, depois de cumprida uma certa quantidade da pena imposta e do seu comportamento carcerário, aos poucos, retornar os laços familiares que deixou antes da prisão, sendo preponderante um eficaz impulso em sua profissionalização, que aliás deveria ter sido adquirida no ambiente prisional, o que não acontece na prática, pois, só assim, o apenado terá tudo para retornar ao convício social sem mais delinquir. Como instituto de reintegração social, havendo a participação da sociedade e dos patronatos, que foram criados pela Lei de Execução Penal para prestar assistência de todos os aspectos ao egresso e ao liberado, certamente o ex condenado voltará a conviver em sociedade sem mais ingressar no mundo da criminalidade. Oferecendo-se ao condenado a oportunidade de recuperação, dificilmente ele retornará ao mundo do crime.
Adeildo Nunes, juiz de Direito aposentado, professor, advogado, doutor e mestre em Direito, autor de livros jurídicos
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