A Constituição de 1988 fortaleceu os Tribunais de Contas como instituições incumbidas de exercer, ao lado do Parlamento, o controle externo da administração pública. É fato que o titular formal do chamado Controle Externo, à luz do que estatui o artigo 71 da Lei Maior, é o Poder Legislativo, que, legitimamente, representa o povo, de onde emana todos os Poderes. Mas foi esta mesma Constituição que acabou delegando a maior parte das competências fiscalizadoras, em matéria de controle externo, aos Tribunais de Contas. A Carta não teve a ousadia, é verdade, de alçar os Tribunais de Contas ao status de um Poder da República, mas também não os inseriu sob o guarda-chuva formal de quaisquer deles.
Em suma: o Tribunal de Contas não é o titular do controle externo, mas é quem detém, por vontade da Constituição, as suas mais relevantes atribuições. Outro aspecto a lhe conferir legitimidade: igualmente ao Supremo, os Tribunais de Contas são frutos ontológicos da vontade de um poder constituinte democrático. Há mais pontos que consubstanciam essa sintonia entre os Tribunais de Contas e a democracia. Eles fiscalizam a correta aplicação dos recursos públicos (do povo). Agem, portanto, a serviço do cidadão, na defesa da legalidade e da boa qualidade das políticas públicas, sem olvidar o seu papel quando, por meio de julgamentos, ajuda a qualificar a democracia, contribuindo para proteger a gestão dos maus gestores (lei da ficha limpa) e também auxiliando o cidadão na escolha dos seus representantes, a partir da transparência de sua atuação.
Como visto neste ensaio, essa legitimidade social vem sendo consolidada a partir de uma profícua atuação do STF, que construiu uma robusta jurisprudência constitucional, conferindo, preponderantemente, máxima efetividade ao poder fiscalizador dos Tribunais de Contas. Pode-se dizer mesmo que o STF tem sido um guardião desses órgãos.
A propósito da democracia, é indubitável a constatação de que ela vive, em escala mundial, uma de suas maiores crises, como atesta, ano a ano, o Democracy Index, compilado pela revista The Economist. Uma nova nebulosa populista e autoritária, catalisada pelo que chamo de algoritmocracia, "e-manada" das milícias digitais, cobre os quatro cantos do mundo. Vivemos uma espécie de quarentena democrática. Tendo o país testemunhado o movimento pelas "Diretas Já" (1984), seguido da promulgação da Carta Cidadã (1988), esperava-se que aquela inflexão democrática seria uma conquista civilizatória imune a retrocessos. Ledo engano. Os perigos da esquina, semelhantes aos tenebrosos anos 30 e 40 do século passado, estão à espreita.
A respeito da relatividade do relógio da história e do risco permanente de movimentos que fragilizam a democracia, recomenda-se a leitura do alerta de Umberto Eco, na magistral palestra proferida na Columbia University, em 1995. Moral da prosa: a tal "nebulosa", camaleonicamente, estará sempre de tocaia e a democracia não é dádiva sagrada, precisa ser regada a cada sol.
As instituições, por sua vez, estão a serviço da democracia e também não funcionam plenamente sem ela. O grau de accountability de uma Nação pressupõe, na lição de Guillermo O'Donnell, eleições e imprensa livres, canais de participação cidadã e a existência de agências de contrapesos - Judiciário, Legislativo, Tribunais de Contas, Ministérios Públicos, Controladorias… - incumbidas da preservação do Estado Democrático de Direito. A percepção hoje é que as instituições brasileiras, a exemplo do STF e dos Tribunais de Contas, embora não estejam totalmente blindadas da vertigem destrutiva dessa nova era de extremos, vêm, no geral, resistindo às tentativas de desconstrução.
Como vaticinado na alegoria do "rio mutante" (Heráclito), todas as instituições republicanas e democráticas devem buscar o aprimoramento contínuo. O STF e os Tribunais de Contas do Brasil estão imbuídos desse propósito existencial. O STF, na trincheira guardiã das liberdades, dos direitos e garantias fundamentais, tendo, muitas vezes, que atuar de forma contramajoritária, na preservação do Estado Democrático de Direito. Os Tribunais de Contas, zelando pela correta aplicação dos recursos do povo, reconhecendo e valorizando todos os avanços dos últimos anos - conquistados, inclusive, como se viu, a partir da jurisprudência do STF -, mas, ao mesmo tempo, atentos, vigilantes e abertos aos ventos republicanos que permitam necessárias mudanças.
Eis a maior missão dessas instituições: honrar o legado do seu patrono-mor, Rui Barbosa. O STF, guardando a Constituição; os Tribunais de Contas, guardando a República. Ambos, a serviço da democracia, do cidadão e do Estado de Direito.
Valdecir Pascoal, conselheiro do TCE-PE
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