E então, vítima pode ser ou não assistente de acusação?
De resto, se há uma acusação formalizada, pois não concretizada a competente denúncia, como, então, falar em assistência de acusação?
A história parece reconhecer na atuação do Ministro Alexandre de Moraes, do STF, entre uma decisão e outra, avaliado o conjunto da obra, um dos principais personagens que evitou, no curso dos últimos anos, que o Brasil despencasse rumo ao autoritarismo outra vez.
Não é exagero que a Nação esteve próxima de uma nova ruptura democrática. As cenas análogas à definição internacional de terrorismo vistas na capital republicana no 8 de janeiro desse ano galvanizaram esse sentimento. Aquilo não foi, decididamente, um piquenique.
Longe da simpatia ou antipatia que desperta por seu estilo, o constitucionalista Alexandre de Moraes é um homem de opiniões firmes. Se com elas se está de acordo ou não é um problema de cada qual. O que não aparenta intimidar o Ministro é o recear da impopularidade. Além disso, seus votos e decisões acabam referendados pelos colegas, ainda que por ampla maioria. O Ministro não é um Dom Quixote a duelar solitário contra as pás rodantes do moinho de vento, imaginando-o tratar-se do inimigo de carne e osso.
Na extensão desse raciocínio de abertura, há que se compreender que não só o Ministro, como qualquer aplicador do Direito, deve ter a segurança para cumprir suas tarefas, sem o que toma conta a baderna, chamariz das tiranias. Sem um Judiciário independente, não existe cidadania duradoura, nem povo livre, quiçá senhor do seu próprio destino.
Chega-se, tudo isso bem assentado, à polêmica jurídica do momento. A vítima no inquérito, afinal, pode ou não ser assistente de acusação? O Código de Processo Penal, com seus 82 anos, nada diz. Por sua vez, a doutrina, em que pese afirme que o papel outrora enxergado à vítima vem vivenciando uma evolução e deixando de ser secundário, sustenta que a legislação não prevê a intervenção do gênero na fase pré-processual, quando mais não for, por questão de bom senso.
O assistente de acusação é, conforme os melhores manuais de direito, o personagem com voz própria que representa a vítima, atuando em prol dos seus interesses, com o conhecimento técnico para tal; não convém que seja a própria vítima. Esse é um debate em combustão persistente na doutrina e há opiniões negativas e afirmativas a respeito. Se é democrática a participação da vítima no processo criminal, até para transparência da Justiça e controle da atividade do Ministério Público, não são poucas as vozes abalizadas de acordo com as quais tal intervenção deve ser concretizada por advogado e não por terceiro, ainda que o terceiro seja o próprio ofendido.
A clareza da regra estipulada no artigo 268 do Código de Processo Penal aparenta ser de natureza solar. A previsão de atuação da vítima como assistente de acusação cinge-se ao processo, ou seja, à ação penal, não retroagindo à fase do inquérito, cujo escopo se limita a subsidiar a opinio delicti a ser fixada pelo Ministério Público. Modificar esse dispositivo, pelas regras do jogo, depende do Congresso Nacional, por ser o CPP, como o é, uma lei federal. Ainda nesse cenário, ter-se-ia de mexer na Constituição no tocante à ação penal pública. Por enquanto, não tem jeito: perdura o inquérito como procedimento pré-processual, de caráter administrativo, e não como ação penal autônoma, até por que não é.
Segundo a sapiência de Platão, o juiz é nomeado para julgar de acordo com as leis e não para moldá-la como queira e bem entenda. Interpretar a lei não significa colocar em sua pena palavras que nela não foram escritas. Se o que se quer é democratizar ainda mais o procedimento penal desde o inquérito, que se reformule o Código de Processo, cujo texto, no momento, não deixa clarões a propósito. Não há atalhos.
De resto, se há uma acusação formalizada, pois não concretizada a competente denúncia, como, então, falar em assistência de acusação? Que os intolerantes, os golpistas, os haters, os stalkers, os caluniadores seriais, sejam punidos exemplarmente, mas não a qualquer preço, ou, novamente, se cometerá o velho erro de pressupor que os fins justificam os meios na persecução criminal, arriscando-se a pôr tudo a perder. Resumo da ópera: não, vítima não é assistente de acusação em inquérito. Mesmo o STF discordando.
Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado