OPINIÃO

Brevíssima resposta a um leitor

Num certo sentido, Arendt nunca deixou o solo europeu e New York tornou-se virtualmente uma nova Atenas. Atenas: o nome verdadeiro do país de imigração de Hannah Arendt que repousa, além disso, no "mais eminente cemitério da Terra

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FLÁVIO BRAYNER

Publicado em 26/03/2024 às 0:00 | Atualizado em 26/03/2024 às 10:15
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Um leitor de meus artigos deste JC, escreveu-me perguntando o que eu achava do fato de Hannah Arendt, uma das minhas conhecidas paixões intelectuais, estar enterrada num "estranho cemitério universitário, algo meio impensável no Brasil", diz ele! Tentarei uma brevíssima resposta.

Peter Sloterdijk, em seu ensaio "A hora do crime e o tempo da obra de arte" (1997. Não traduzido), conta que passeando um dia pelo cemitério do Bard College, ao norte de Nova York, deparou-se com a tumba de Hannah Arendt e de seu segundo marido H. Blücher.

Chamou a atenção do professor da Universidade de Karslruhe, não apenas o fato de tratar-se de um cemitério de campus - um cemitério para professores!- mas também de uma tumba - a de Arendt- discreta e sóbria. Sloterdijk se pergunta "que universidade europeia possui suficiente espírito de corpo para se encarnar numa virtual comunidade de professores mortos?". De um certo ponto de vista, a universidade representa o lugar em onde as cidades são mais urbanas, e é através dela que a cidade se abre para o mundo: ali onde existem universidades, as cidades se tornam cidades mundiais! O que aquele professor quer dizer é que, contrariamente a Heidegger (cuja tumba está no pequeno cemitério de Messkirch), a tumba de Arendt está no coração da cidade mundial.

Destas elegantes observações podemos extrair uma ou duas notas a respeito daquela grande personalidade da filosofia do século XX, mas cuja obra nunca foi "sistêmica" ou "completa", mas que conhece uma unidade profunda na medida em que afirma que, sem homens não há mundo; de que sem um mundo do qual falar, também não há homens. E este homens não são necessariamente aqueles que vivem em nossa imediata contemporaneidade: Maquiavel, aliás, gostava de, ao entrar na sua biblioteca, poder "gozar da companhia dos mortos"!

Mortos que não são necessariamente uma "opressão sobre o cérebro dos vivos" (como queria Marx) mas aqueles que nos deixam um "testamento" nos inquirindo sobre que mundo deixaremos para "aqueles que virão depois de nós", como no poema de Brecht. Hans Jonas, que era amigo de Arendt e fez sua oração fúnebre, em sua admirável tentativa de construir uma ética da responsabilidade, produziu uma rotação na razão prática kantiana: trata-se de agir, agora, de forma que nossas ações não prejudiquem as gerações futuras: uma ética prospectiva que Arendt traduziria em termos de "responsabilidade do Mundo".

Para Arendt somos todos "passantes" que estiveram entre os homens entre as fronteiras do nascimento e da morte, homens que nos deixaram como herança a possibilidade de renovar este mesmo Mundo, em um sentido que não está antecipadamente definido. O problema é o que faremos dessa herança sem testamento!

Arendt esteve sempre preocupada com o fato de podermos continuar a PENSAR, quer dizer, se ainda poderíamos interromper o encadeamento automático de nossas certezas; inquieta com o fato de homens normais e ordinários praticarem o "mal absoluto"; se a modernidade poderia de fato cumprir as promessas utópicas que fizera; se a educação poderia garantir a "continuidade do Mundo"; se o homem ainda portaria um rosto propriamente "humano" no futuro; se a política ainda poderia se constituir naquele espaço onde aparecemos uns aos outros para decidir destinos de um mundo comum; se a pluralidade dos pontos de vista que forma a Democracia não seria derrotada pelos totalitarismos futuros: ela sabia que, uma vez no Mundo, nós "começamos algo", mas nunca saberemos como terminará!

Creio, caro leitor, que repousar em definitivo em meio a professores, num modesto cemitério universitário, fornece a uma vida sua mais alta dimensão política e... pedagógica! Não no Panteão dos Filósofos, mas entre aqueles que por função e- gostaria eu- por convicção, tomam para si uma parte importante daquela "responsabilidade do mundo" e que dispõem, para enfrentar tal responsabilidade, da única arma possível; a palavra. Num certo sentido, Arendt nunca deixou o solo europeu e New York tornou-se virtualmente uma nova Atenas. Atenas: o nome verdadeiro do país de imigração de Hannah Arendt que repousa, além disso, no "mais eminente cemitério da Terra" (Sloterdijk).

Flávio Brayner, professor

 

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