Quando o remédio, ao invés de curar, mata o paciente
O sistema carcerário brasileiro é o terceiro maior do mundo. Não se pode tratá-lo como regra, quando é exceção, nem prestigiar o populismo penal erigindo a falácia à condição de premissa, nem legislar pensando em holofotes e votos.
No último dia 25/3, a OAB aprovou à unanimidade parecer cuja conclusão concita ao veto presidencial à extinção do benefício da saída temporária (também apelidada de "saidinha"), previsto na Lei de Execuções Penais (Lei 7.210/1984), artigos 122 e 125, que se reporta aos condenados a penas privativas de liberdade em regime semiaberto, não sentenciados por crimes hediondos que resultaram em morte.
Na convicção do relator, a proposta da extinção é "(...) um retrocesso social", seja "por afetar um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, que é a dignidade pessoa humana", seja por afrontar "um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, que é construir uma sociedade justa e solidária", seja por contrariar o direito básico de não ser submetido a tratamento degradante e a pena cruel"; seja por atentar contra o "princípio da prevalência dos direitos humanos, com a aplicação de convenções internacionais às quais o Brasil se obrigou no plano internacional".
Subscrevo ipsis literis as conclusões. De fato, a saída temporária, para que o leigo consiga entendê-la melhor, não é um "oba-oba" às custas suas, principalmente porque pressupõe bom comportamento. Sucede que se desfigurou em mais um assunto sensível em volta do qual sobra populismo e falta maturidade. Daí a "solução fácil" de se erradicar o mal pela raiz ao invés de aplicar o fungicida capaz de salvar a árvore. A despeito de ser uma importante ferramenta de política criminal, a saída temporária embasa o PL 583/2011, da Câmara dos Deputados, transformado no PL 2.253 no Senado, ideia que tramitou por todo esse tempo no Congresso, sem um contraponto obstrutivo eficaz. O monstro então vivificou, como o Frankenstein de Shelley.
Fere-se, acima de tudo, o universal princípio da vedação ao retrocesso (ou da vedação à reversibilidade) em sede de direitos humanos (realidade também chamada de "efeito cliquet", expressão comum entre os alpinistas, que indica o ponto da escalada a partir do qual não é possível retroceder).
A ênfase, aliás, nesse princípio é deliberada. Com efeito, não se trata de pensar antes no criminoso. Trata-se de entender que, com a saída temporária funcionando como deve, quem ganha é o interesse público. Há diversos levantamentos estatísticos mostrando ser ínfima a quantidade de crimes cometidos durante o período desse benefício, assim como que são baixíssimos os índices de recaptura depois de exaurido seu prazo, Logo, o problema maior não é a saída temporária, mas o "estado de coisas inconstitucional" do sistema prisional, afirmado pelo STF na ADPF 347.
O apelo sensacionalista a discussões precipitadas e sem aprofundamento é uma das tragédias da era moderna. A lamentável morte de um agente policial pelas mãos de um suspeito que havia sido favorecido com a saída temporária e não se reapresentou, motivou em um parlamento altamente polarizado o recrudescimento de um discurso que ignora que a saída temporária: 1) fortalece os laços familiares e comunitários; 2) promove a reintegração assistida e progressiva; 3) fomenta a redução das chances de reincidência; e 4) incentiva o bom comportamento.
É sob o viés histórico uma das principais finalidades da pena a de promover esse plexo de objetivos. Extirpar a saída temporária da legislação não irá reduzir a criminalidade, mas aumentará o tempo de convívio do preso com este caótico sistema dominado por facções.
A criminalidade é um fenômeno complexo. Merece ser encarado multidisciplinarmente, de olho na próxima geração e não nas próximas eleições. Enquanto predominar o casuísmo e o preso for enxergado como inimigo social, o embrutecimento sufocará a lucidez e turvará a reação legislativa imprescindível. Que o Presidente da República vete o projeto ante o seu viés claramente punitivista e inconstitucional, e que, se o veto for derrubado, que, então, via ADPF, o Judiciário restabeleça a seriedade das coisas. Já basta de atraso.
Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado