OPINIÃO | Notícia

Censura e liberdade de expressão: a ousadia de um breve manual

Na modernidade da comunicação instantânea que alimenta o fenômeno das "redes sociais", não é incomum, ou ao menos não vem sendo, o argumento de que toda ingerência estatal sobre conteúdo é censura, logo, é ruim

Por Gustavo Henrique de Brito Alves Freire Publicado em 09/05/2024 às 0:00 | Atualizado em 09/05/2024 às 10:17

Tornou-se faixa única nos lados A e B do vinil de certo segmento essa cantilena enfadonha, repetida à rouquidão.

Tais pessoas ou não entendem de direito constitucional, pelo quê falta quem as oriente, ou até lhe conhecem os meandros, mas preferem torcê-los e ressignificá-los para que se conformem a outros paradigmas, os quais nada têm a ver com a garantia fundamental da liberdade de expressão.

Nessa saga que acreditam ser de salvação coletiva, sem uma grande preocupação com a adoção de escrúpulos mínimos na seleção do vernáculo, os jurisconsultos da internet, diplomados em Direito ou não, escolhem a dedo seus desafetos, cidadãos normais ou autoridades, e contra eles não cansam de investir.

E assim sempre se pondo na bolha de certo sentimento de indignação, desfilando o que tratam como "críticas" , as quais, no entanto, raramente o são, pois tendem a degringolar para acusações de práticas tipificadas como crimes, ante cujo contexto desbordam do apontamento de meros "equívocos".  Ao fim e

ao cabo, juram que tudo fazem na heróica defesa da Constituição. Esta é a messência da contestação, por exemplo, de diversos detidos no preparativo de golpe que foi o 8 de janeiro de 2023.

Sobre a censura, a premissa está bem retratada por Rafael Dilly Patrus (Consultor Jurídico, 30/3/24), quando escreve: "(…) a liberdade só se justifica concretamente quando os motivos para proteger a expressão se mostram mais fortes e convincentes do que os motivos para restringi-la".

Efetivamente a liberdade de expressão é um direito complexo, cuja proteção se justifica à luz de múltiplas razões que se sobrepõem. A regra, portanto, é a da liberdade; a exceção é limitá-la. Vedada a censura prévia, o que não acontece quando a opinião já foi externalizada. A propósito, vide a obra do norte-americano John Stuart Mill, em cujos volumes a máxima a ser obedecida é a de que, em um ambiente no qual a expressão circule livremente, os cidadãos se aceitam mais habilitados a identificar a

verdade, a rejeitar a mentira e a produzir e propagar o conhecimento.

A expressão livre surge como um direito da coletividade, abarcando gerações atuais e futuras: a propagação de uma opinião ou pensamento beneficia menos seu emissor e mais seu receptor. Assim, que circule a maior variedade possível de expressões é chave para assegurar que sejam os entendimentos e convicções da sociedade ora revisados, ora reforçados.

Obstruir a veiculação de um pensamento feriria o interesse coletivo, pois, citando Mill, "se a opinião está certa, somos privados da oportunidade de trocar o erro pela verdade; e se ela está errada, perdemos algo igualmente valioso: a chance de produzir, a partir da colisão com o erro, uma percepção mais clara e uma impressão mais viva da verdade". Chega-se então em um salto de muitas décadas ao Brasil de hoje  dono, o X, antigo Twitter, quando enfileirou seguidas avaliações por ele lançadas contra o STF, em especial contra o Ministro Alexandre de Moraes, que, diga-se de passagem, quem ama ou odeia assim o faz sob a mesma temperatura. Para além de quem concorda com a linha de trabalho do Ministro e os julgados do Supremo e quem crê que Musk verbalizou com coragem aquilo que muitos gostariam de dizer mas não podem, o que está em xeque é um dos mais sérios desafios do século 21: o potencial nocivo das redes sociais e da internet.

O certo, racionalmente falando, é que a democracia como a história a consagra nos bons livros não se vê apta a dividir o mesmo teto que a pressuposição de que o constituinte originário de 5/10/1988, entre nós, quis no artigo 5º, com todas as forças, conceber um feixe de garantias absolutas, incondicionadas, sem fronteiras, sem diques de contenção e sem anteparos anti-abusos. A distinção do analista reside aí. Quem enxerga o copo de um jeito vê censura; de outro, não.  Estou entre os últimos.

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado

 

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