Trânsito e dengue
Nossas estradas, avenidas e ruas são nossas veias e artérias, e os pedestres, veículos e seus usuários são como o sangue, irrigando o dia a dia da cidadania.

Muito tem se falado e lutado para alertar sobre a relação direta entre os sinistros de trânsito e o sistema de saúde no Brasil. Os altos índices de ocupação nos serviços de emergência e UTIs, que em algumas especialidades como a ortopedia e traumatologia estão sempre rondando os 90% de ocupação nos equipamentos hospitalares (públicos e privados), representam elevado impacto orçamentário e de demanda de leitos, o que já tem provocado iniciativas e políticas públicas de saúde específicas para essa seara. Quando isso se junta aos óbitos que no Brasil passam dos 33 mil* ao ano só no momento do sinistro e a que se somam mais no mínimo 2/3 se consideradas as mortes a posteriori causadas em função dos decorrentes ferimentos e traumas, transforma o Sistema Nacional de Trânsito em um ator impactante na saúde pública, hoje já sendo enxergado como tal.
Queremos salientar aqui, porém, uma outra interferência - indireta e cuja percepção passa ao largo - do sistema de trânsito na saúde pública. Essa não decorrente do conflito entre os veículos em movimento, mas sim, paradoxalmente, de veículos que estão parados a bastante tempo. O recente alerta para o recrudescimento das ocorrências de doenças transmitidas por insetos, que voltou a ser preocupação nacional - com destaque para a dengue, - e que tem em águas paradas e acumuladas (ainda que em pequenas quantidades), os focos de criatórios dos mosquitos transmissores, vai encontrar em um nicho específico da frota nacional de veículos um grande contribuidor na criação e propagação de insetos transmissores. Falamos aqui dos pátios de apreensão, retenção e guarda de veículos que estão espalhados por todo o território nacional e onde se estima estão mais de meio milhão de veículos parados a céu aberto. Um verdadeiro paraíso para o Aedis egypti e seus congêneres.
Reforçamos que os pátios são: muitos; espalhados pelos quatro cantos do País; via de regra a céu aberto; e com um tempo médio de permanência bastante elevado. Ou seja, explorando bem a palavra-chave, se os mosquitos são os "veículos" da propagação das doenças, os pátios (de "veículos") são "veículos" para sua reprodução e disseminação. São motocicletas e automóveis oriundos tanto da retenção ou apreensão decorrentes da aplicação das penalidades administrativas previstas no Código de Trânsito Brasileiro quanto os recolhidos por inadimplência em financiamentos ou por força de determinação judicial das mais diversas espécies e que estão em pátios de instituições públicas ou de empresas especializadas na remoção e guarda.
Pois bem. Apresentado o problema, manda a boa prática que se apresente também proposituras de soluções, já que seu mero noticiamento não trará perspectivas de melhorias para quadro tão grave e de impacto direto e imediato na saúde das pessoas: Nesse sentido, no nosso entendimento, faz-se urgente que se desburocratize e se definam ritos mais ágeis para o desfazimento desses veículos para assim diminuir drasticamente o tempo médio de suas permanências nos pátios, minimizando a possibilidade de transformarem-se em berço de focos de doenças. Sendo, dentro da previsão legal, a hasta pública a forma mais usual, eficiente e transparente para esse desfazimento, entendemos ser fundamental não só o estímulo à sua maior utilização mas, principalmente, a agilização dos preparativos para sua realização, com simplificação dos requisitos preparatórios que envolvam órgãos públicos.
A Resolução CONTRAN nº 623/2016 já nos trouxe alguns avanços nesse sentido mas há que se buscar um engajamento mais amplo de revisão normativa que traga agilidade não só pelo Órgão Máximo Normativo do Trânsito (CONTRAN) mas também nas varas judiciais eventualmente envolvidas, nos tabelionatos, nas instituições financeiras credoras, nos órgãos de trânsito executores da apreensão e principalmente dos DETRANs, que são os responsáveis pelo registro e controle dos veículos e onde tramita a maior parte dessa preparação documental. Em tempo lembramos ainda que, além dos criatórios de insetos vetores como o da dengue, que nesse momento é manchete nacional, uma série de outras pragas urbanas como ratos, baratas e animais peçonhentos também encontram nesses pátios o ambiente ideal para sua proliferação. Se só a questão de saúde pública já justificaria esse esforço de desburocratização visando a agilidade, entendemos que acessoriamente uma série de outros aspectos positivos, se incorporariam, sendo que aqui destacamos o que mais interessa ao Sistema Nacional de Trânsito: A completude das penalidades impostas aos infratores de trânsito e o cumprimento do seu principal mecanismo: o didático, uma vez que a efetivação do perdimento do veículo desestimula o infrator e o seu entorno de convivência a cometerem as infrações que possam levar à apreensão do veículo, pelo temor do risco de efetiva perda do bem patrimonial, diminuindo assim a falsa percepção de impunidade. O trânsito é o sistema circulatório da sociedade.
Nossas estradas, avenidas e ruas são nossas veias e artérias, e os pedestres, veículos e seus usuários são como o sangue, irrigando o dia a dia da cidadania. No seu trajeto ele transita pela saúde, pela segurança, pelo meio-ambiente, pelo lazer, pela economia......irrigando e alimentando de meiostodos esses processos do cotidiano. Essa interface é sistêmica. Precisa estar sendo observada permanentemente e tratada como parte da solução e não como parte do problema, como é este exemplo da Dengue que ora abordamos.
Se, no caso específico da saúde, minimizar o impacto dos veículos que trafegam é um esforço desafiador, por conta da complexidade de estarem em constante movimento, minimizar os problemas dos que estão parados em pátios nos parece bem mais fácil e factível e pode trazer grandes benefícios sem demandar quase recursos financeiros, só revisão e agilização em algumas normas procedimentais. Com apenas integração e bom senso podemos ter menos veículos nos pátios, menos transmissão de doenças. Mais arrecadação, maior respeito ao C.T.B. ... , ou seja, ganha x ganha para todos.
Walker Barbosa, presidente do Conselho Estadual de Trânsito de Pernambuco (CETRAN-PE). Ex-superintendente da Polícia Rodoviária Federal e Diretor de Mobilidade do GERE