OPINIÃO

Graciliano Ramos: o Escritor Prefeito (Parte 1)

Naquela época, ainda não havia, ao menos nos âmbitos estaduais e municipais, uma legislação mais detalhada sobre finanças públicas, prestação de contas ou órgãos de controle técnicos encarregados de apreciar a conduta de seus gestores.

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VALDECIR PASCOAL

Publicado em 26/05/2024 às 0:00 | Atualizado em 26/05/2024 às 10:10
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Todos conhecemos a importância de Graciliano Ramos como escritor, representante da magistral "Geração de 30" da nossa literatura, autor dos clássicos "Vidas Secas", "São Bernardo", "Caetés", "Angústia", "Infância", "A Viagem", "Insônia" e "Memórias do Cárcere". Consagrado pela linguagem direta, substantiva e dotada de um forte componente humanista, sua obra é reveladora da enorme desigualdade social e regional em nosso país, desafios ainda presentes nos dias que correm.

Poucos sabem, contudo, que ele foi Prefeito do Município de Palmeira dos Índios, em Alagoas, nos anos de 1928 e 1929. Naquela época, ainda não havia, ao menos nos âmbitos estaduais e municipais, uma legislação mais detalhada sobre finanças públicas, prestação de contas ou órgãos de controle técnicos encarregados de apreciar a conduta de seus gestores.

Foi justamente nesse período, como gestor público, que ele produziu um dos documentos mais republicanos de que se tem notícia no Brasil. Falo dos dois Relatórios de gestão enviados ao Governador do Estado, em 1929 e 1930, ao final de cada ano de seu mandato. Neles, o Prefeito Graciliano descreve, com honestidade ímpar, os principais desafios da gestão, o que foi feito, quanto custou, o que foi adiado, o que foi revogado, as justificativas sobre a priorização de certas políticas públicas em detrimento de outras, os obstáculos enfrentados, a exemplo da escassez de recursos e dos costumeiros privilégios, a realidade administrativa, a questão tributária, as obras públicas, os empregos e até a psicologia dos servidores, cidadãos e dos contribuintes. Para muitos, guardadas as devidas proporções históricas, os Relatórios podem ser equiparados ao chamado "Projetos para o Brasil", elaborado por José Bonifácio (1763-1838), em que propunha medidas estruturadoras para a modernização da nação.

Depois da leitura dos textos de Graciliano, a conclusão é que Palmeira dos Índios teve no comando de seu destino, naquele biênio, um verdadeiro "repúblico", terminologia usada por Rui Barbosa para se referir aos governantes diferenciados, que tivessem por marca a integridade e o respeito ao interesse público. Ele executou, com notável esmero, um dos maiores desafios da gestão pública brasileira até hoje: conciliar as responsabilidades social e fiscal. Exemplo de transparência, de impessoalidade, de motivação dos atos administrativos, de priorizar o orçamento para aqueles que mais dependiam do poder público, de coragem para tomar medidas duras e, por vezes, impopulares para certos segmentos sociais, atributo de um verdadeiro estadista. Mas há outro traço marcante dos seus textos: a linguagem clara, direta, objetiva, sem rodeios, concisa. Estilo singular que, vale dizer, está em plena sintonia com o atual movimento cidadão pela Linguagem Simples, revelando, uma vez mais, que se tratava de um ser humano bem à frente do seu tempo. E, vale ressaltar: linguagem simples, mas sem deixar de já revelar humor, ironia e os preciosos dotes literários daquele que, mais tarde, seria reconhecido como um dos maiores escritores brasileiros.

No mês passado, Gustavo Krause, leitor voraz e sempre atento aos temas ligados à boa governança pública, deu-nos, aqui mesmo neste espaço, a notícia do lançamento do livro "O prefeito escritor: dois retratos de uma administração" (Record), que traz a íntegra dos Relatórios. No comentário sobre a obra, a partir de sua inteligência peculiar, Krause destaca algumas passagens que são verdadeiras lições a servir de inspiração para nossos gestores públicos, notadamente neste ano de eleições municipais. O livro é leitura obrigatória para todos, principalmente para aqueles que aplicam os recursos do povo

Nas próximas colunas, aproveitarei outras passagens emblemáticas dos históricos Relatórios do Prefeito Graciliano para refletir sobre alguns temas do momento quando o assunto é gestão pública e controle. Começarei pela questão tributária e as renúncias fiscais.

P.S.: Uma confissão final: minha relação com os Relatórios do Velho Graça vem de longe, é inspiração antiga, que remonta ao início dos anos 2000, no contexto da aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Nesse mesmo JC, publiquei, em 2002, o artigo "Graciliano Ramos e a LRF". Um pouco mais tarde, trechos dos Relatórios compuseram - e ainda estão lá - a epígrafe do meu livro "Direito Financeiro e Controle Externo". E quem primeiro me apresentou à íntegra dessas relíquias? Gilberto Marques Paulo, que foi Prefeito do Recife, Deputado Estadual, Procurador do Estado, Professor da Faculdade de Direito do Recife, conterrâneo de Graciliano, e um dos filhos adotivos mais ilustres e honrados de Pernambuco. Ao ler o meu artigo no JC, como é do seu feitio generoso, ligou-me de imediato e, no outro dia, bem cedo, já me entregava, em mãos, a primeira edição dos Relatórios. Ao querido Giba, minha gratidão!

Valdecir Pascoal - conselheiro-presidente do TCE-PE

 

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