A mentira
Se levarmos em conta o "progresso do espírito" que nos trouxe até aqui, acho que o CRIME e a MENTIRA estiveram presentes não apenas na origem do social, mas ao longo de toda a história dos homens. E estarão presentes, certamente, no seu fim!

Quando ainda era jovem estudante de História, assisti a uma defesa de tese em que estavam na banca examinadora os professores Ariano Suassuna, Gabriela Martín Avila e Roberto Amorim (fui aluno dos três, com muito orgulho!). Ao tomar a palavra, Ariano começou dizendo: - “Essa banca tem uma Cientista, um Filósofo e um... mentiroso!”.
Essa adjetivação moral com a qual Ariano se autodefiniu não deve ser levada inteiramente a sério, numa acepção banal de alguém que nunca diz a “verdade”. Ariano era, num sentido mais preciso, um fabulador, um inventor de situações humanas inusitadas, um ficcionista nas mãos de quem aquilo que chamamos de “realidade” (que supomos conter uma verdade pronunciável e objetiva) se transformava, adquirindo outro significado, ao mesmo tempo maravilhoso e embaraçoso! Ariano narrava e inventava o inacreditável! E sem esse “inacreditável”, nossas crenças se limitariam à objetividade do existente. Eis o sentido agostiniano do “Credo ad absurdum” (Creio porque é absurdo!).
Arendt (“Política e Verdade”) afirmou que o “contrário” da VERDADE não era a MENTIRA, mas a FALSIDADE, e os estudos que ela fizera sobre o conceito de Amor em Agostinho, já assinalaram sua concepção de mentira (que Agostinho também trabalhara num longo ensaio: “Sobre a mentira”): o mentiroso não é alguém que desconhece a verdade, um ingênuo que pronuncia algo não verdadeiro, mas alguém que sabe que está mentindo, burlando a realidade: é essa consciência da burla, do engodo dirigido ao outro para assegurar interesses e vantagens pessoais ou de grupo, que caracteriza o MENTIROSO.
Numa época de disseminação e divulgação massiva por meio digitais de “Fakenews” (a mentira consciente e metodicamente produzida), soa estranho um título de livro como “A decadência da mentira. E outros ensaios”, escrito por aquele mestre do epigrama, da réplica mordaz que foi Oscar Wilde (1854-1900), traduzido por João do Rio (do original “Intentions”. 1891).
Wilde, protótipo do Dandy provocador em plena Inglaterra vitoriana, observava que a tentativa de trazer a Literatura (ou a Arte em geral) para perto da realidade (Realismo, Naturalismo) desmoralizava a própria Arte: “uma arte colada à vida não serve nem à Arte, nem à Vida”!
É essa proximidade entre Arte e Vida que caracteriza, para Wilde, a “decadência da mentira”, entendendo aqui a “mentira” como ficção, como aquela fabulação que elaboramos exatamente para que a Vida possa ganhar um sentido para além da simples experiência biológica; é na NARRAÇÃO que o real nos aparece de uma forma específica e dotada de significado. Um pôr-do-sol, por exemplo, enquanto fenômeno natural, não é nem feio nem bonito: ele se torna um “lindo e triste pôr-do-sol que arruinou o dia” (Baudelaire) quando um poeta, um artista da palavra o conota e o denota.
“O fim do mentiroso é simplesmente encantar, fascinar, proporcionar o agrado. Ele é o fundamento das sociedades(...). A Arte, evadida da prisão do Realismo, correrá ao seu encontro, beijar-lhe-á os lábios mentirosos”: Wilde achava que nenhum artista vê as coisas como as coisas são realmente!
Freud, por sua vez, supunha que na origem das instituições sociais (a proibição do incesto, por exemplo) existia um crime (“Totem e Tabu”); Wilde imaginava que ali, na origem do social, residia a mentira (o paraíso, a sociedade sem classes, os Deuses do Olympo, os seres hermafroditas, o Mundo da Ideias...), e Nietzsche achava que a Verdade, no início, era apenas “uma metáfora que fora esquecida”... e tornou-se verdade!
Se levarmos em conta o “progresso do espírito” que nos trouxe até aqui, acho que o CRIME e a MENTIRA estiveram presentes não apenas na origem do social, mas ao longo de toda a história dos homens. E estarão presentes, certamente, no seu fim!