As praias têm dono
É o que diz o artigo 20, IV e VII da Constituição: "São bens da União...as praias marítimas; os terrenos de marinha e seus acrescidos".

Por sua vez, o Código Civil define três tipos de bens públicos, entre os quais, preceitua o inciso I do artigo 99 "os de uso comum do povo, tais como, rios, mares, estradas, ruas e praças".
Deveria ser um entendimento pacífico a fruição comum das praias e dos terrenos de marinha, elementos constitutivos de um agregado cuja separação pressupõe a proteção dos ecossistemas lindeiros, suscetíveis a impactos negativos e danos irreparáveis para o equilíbrio ambiental.
Mas não é bem assim. Trata-se de um tema que atravessa séculos, graças a uma linha imaginaria de 33 metros a partir da preamar (mare cheia) média do ano de 1831, que delimita um solo (terreno de marinha), desgarrado do vaivém das ondas oceânicas que se "quebram" nas "praias marítimas".
Eis que "os terrenos de marinha e acrescidos" passaram a ser, no caso brasileiro, objeto do desejo Estatal/Imperial, quando a Coroa Portuguesa determinou na Ordem Régia 21/10/1710 que as terras dadas em sesmarias compreendessem as marítimas, devidamente desimpedidas, para qualquer serviço da Coroa e a defesa da terra.
No entanto, somente em 18 de novembro de 1818, constituiu-se o terreno de marinha, assim definido pela Ordem Régia: "tudo o que toca a água do mar e acresce a ela é da Coroa, na forma da Ordenação do Reino" e que "da linha d'água para dentro sempre são reservadas 15 braças craveiras pela borda do mar para serviço público".
Nesse texto, está a medida primitiva, braça craveira, (dez palmos de 22 centímetros multiplicados por 15) correspondente a 33 metros, calculados a partir da linha de preamar. Na sequência, em 16 de novembro de 1831, os referidos terrenos passaram a constituir uma fonte de arrecadação desde o ano financeiro do 1831/1832, acolhidos pelo Decreto-Lei 9760 de 15 de setembro de 1946.
Com efeito, os terrenos de marinha têm uma vida longa e um histórico polêmico. A rigor, deveriam estar submersos, considerando o avanço das marés ao longo de dois séculos, bem como, seguem seriamente ameaçados pela elevação do nível do mar em decorrência da aceleração das mudanças climáticas. Apesar dos riscos reais, os terrenos de marinha seguem na agenda do debate político seja pelo que representou e representa como carga tributária suportada pelos contribuintes, seja pelo ônus que acarreta aos custos de transação nos negócios imobiliários.
Como fonte de arrecadação, alimentam o erário com a anacrônica incidência do foro, do laudêmio e da taxa de ocupação pela posse ou venda do domínio útil do imóvel pertencente à União. Entram e saem governos; promulga-se uma nova constituição; foi criada a moeda que completa trinta anos; reformas improváveis foram feitas nas últimas duas décadas; a carga tributária chega a 34% do PIB, porém, seguem firmes os terrenos de marinha e os velhos impostos.
De repente, voltam à cena no acalorado debate sobre proposta de Emenda Constitucional, a PEC 03/2022, batizada pela opinião pública como "A PEC das praias", ora tramitando no Senado, após aprovação expressiva na Câmara por 389 votos a favor e 91, contra. O projeto estabelece no artigo 2º a extinção das "malfadadas" cobranças da taxa de ocupação, foro e laudêmio: notícia alvissareira! Ao mesmo tempo, redefine a propriedade dos terrenos de marinha e facilita a transferência dos referidos bens em áreas urbanas da União, para Estados, Municípios e proprietários privados: notícia preocupante!
Desde sempre, as áreas, quanto mais próximas do litoral, mais valiosas como ativo imobiliário e, sobretudo, como precioso ativo ambiental que abriga todo o ecossistema costeiro e sua interação virtuosa com uma vizinhança muito especial que são os manguezais, restingas, dunas, a biodiversidade marinha a serem bem cuidados por conta dos benefícios gerados para a regulação climática e mitigação dos efeitos de eventos extremos.
O olhar crítico depende muito de um debate sereno o que cada dia se torna mais difícil no ambiente radicalizado. O que está em jogo é uma séria decisão com enormes consequências socioambientais. Neste sentido, é fundamental envolver os poderes e as comunidades locais afetadas de modo que sejam planejados e executados padrões adequados de ocupação e uso do solo.
Cabe, por fim, aos parlamentares o cumprimento do parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal, na representação dos legítimos interesses do dono das praias que é o povo que os elegeram.
Gustavo Krause, ex-governador de Pernambuco