PL do Estuprador se move nas sombras
O clamor das ruas não tardou e tomara que não arrefeça, porque propostas escusas como o PL do Estuprador precisam das sombras para progredirem.

Entre as várias vozes que se levantaram inequivocamente contra o Projeto de Lei 1904, a da advogada Luciana Temer, professora da PUC/SP e presidente do Instituto Liberta, em entrevista à Globonews, resumiu o cerne da questão. A proposição do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), assinada por outros 32 parlamentares alinhados com a extrema direita (12 deputadas e 20 deputados), não pode nem deve ser confundida com outra pauta, igualmente importante e merecedora de debate amplo com a sociedade brasileira. O chamado PL do Estuprador não se dedica a rever o direito ao aborto no Brasil, que, salvo alguns casos específicos, segue sendo proibido por lei. Tampouco se arvora a expandir ou revisitar as hipóteses legais nas quais a interrupção da gravidez é consentida (nos casos em que são resultantes do estupro, ameaça grave à vida da gestante e se o feto for anencefálico). O PL 1904 é uma excrescência porque pretende retroagir 84 anos, reformando o artigo128 do Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940, ao incluir um limite de tempo (até 22 semanas) para que o aborto legal seja realizado, imputando 20 anos de prisão (pena similar à do homicídio simples) à mulher que infringir a determinação.
São muitas as camadas e falácias que cercam essa ameaçadora cortina de fumaça lançada pelos ultraconservadores. Políticos que debocham da condição de laicidade que o Brasil adotou desde sua primeira constituição republicana, em 1891, forçando caminho para um estado teocrático no qual, cada vez mais, a religião se imiscui nas políticas públicas. Em todas elas, a hipocrisia vem disfarçada sob a capa do argumento "pró-vida", desconsiderando que, em todos os casos que envolvem o aborto legal no Brasil, é a vida materna que está sob ameaça. Ao tentar estabelecer um "prazo gestacional" para que o procedimento seja concluído de forma legal e segura, através do serviço público de saúde, o que a "bancada da bíblia" realmente faz é pregar um alvo nas costas de todas as mulheres e meninas que, vitimadas por qualquer uma das circunstâncias previstas em lei, precisarão correr contra o relógio para não se tornarem criminosas passíveis de uma pena que supera até mesmo aquela imputada ao estuprador, que seria de oito anos.
Os dados fartamente apresentados pelas organizações governamentais e não governamentais não deixam dúvidas sobre o quão cruel, injusta e infrutífera seria essa busca por assistência sob a forma da nova lei em proposição. Com quantos meses uma grávida consegue receber o diagnóstico conclusivo de que carrega um feto inviável? Em que altura se descobre que a futura mãe desenvolveu uma doença que, permitindo-se o prosseguimento da gravidez, colocará sua vida em risco? Mais de 60% das vítimas de estupro no Brasil têm até 13 anos (10,4% têm menos de 4 anos) e cerca de 70% dos agressores são conhecidos das vítimas, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023. Neste mesmo contexto, para além dos entraves já existentes para acessar um direito garantido (incluindo o julgamento moral/religioso por parte dos profissionais de saúde e o silenciamento da vítima), a jornada de sofrimento à qual é submetida uma criança, jovem ou mulher ferida em sua dignidade sexual e na sua sobrevivência não pode ser contabilizada em dias, semanas ou meses. A solução precisa estar disponível, de forma segura, a qualquer momento em que a gestante sinalize a vontade de interromper sua gravidez, dentro dos critérios já estabelecidos no Código Penal.
Alguém duvida que esses mesmos números robustos, indicadores da tragédia que seria a aprovação do PL 1904, são desconhecidos por parte daqueles que subscrevem a alteração proposta? A resposta óbvia é "não". Indo adiante, buscando justificativas onde elas inexistem, resta deduzir que esses parlamentares apenas não se importam. Perseguem seus interesses políticos/ideológicos a qualquer custo, ainda que utilizando como palco a vida e os corpos das mulheres. Em entrevista ao blog da jornalista Andreia Sadi, o autor do PL, Sóstenes Cavalcante declarou: "Queremos ver se ele vai vetar, vamos testar Lula", declarou.
O clamor das ruas não tardou e tomara que não arrefeça, porque propostas escusas como o PL do Estuprador precisam das sombras para progredirem. Penumbra como aquela articulada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, aprovando a tramitação da matéria em regime de urgência, sem passar antes pelas comissões e discussões pertinentes. O mesmo Arthur Lira que já recua diante da repercussão e das pesquisas de opinião indicando repúdio pela maioria da população brasileira, composta tanto por pessoas antiaborto quando pró-escolha. A desfaçatez é tamanha que, quando confrontado com este resultado, divulgado por três respeitáveis instituições de pesquisa, o deputado Cezinha de Madureira (PSD-SP), na mesma entrevista à Globonews, diz que sua fonte de informação é mais confiável que a dos seus oponentes. A origem? Deus.
Gisele Martorelli, advogada