Esquerda x Direita e a visão binária
Ao contrário do que podem pretender, ao rejeitar todos que não são de esquerda, jogam o centro e mesmo a direita no colo da extrema-direita.

A polarização tomou conta da disputa política e eleitoral no Brasil e em vários outros países, esmagando as ideias e tendências de centro que procuram se distanciar dos extremos dos dois polos político-ideológicos. A polarização política vem carregada de fanatismo, adesão emocional aos líderes e intolerância e ódio irracional dos adversários, constituindo, por último, uma ameaça à democracia e à estabilidade política e institucional.
Além disso, o que é mais grave, a polarização está contaminando o terreno da análise política racional, inibindo o pensamento crítico e independente. Predomina na análise política uma visão binária, interpretando a sociedade, o jogo político, os valores e, mesmo, dos conflitos geopolíticos como um dualismo do bem e do mal. O pensamento binário observa o mundo com uma visão simplista e dualista que ignora a complexidade da realidade, as múltiplas facetas da sociedade e do jogo político.
Curiosamente, os analistas binários do mundo e da política são os mesmos que rejeitam com veemência o recorte binário de gênero, ressaltando com razão que existem múltiplas nuances nas identidades sexuais. Em todos os outros fenômenos e manifestações sociais e políticas as nuances desaparecem, subjugadas pelo maniqueísmo dos ideólogos da esquerda senil, reduzindo tudo a dois únicos polos excludentes e sem qualquer nuance.
Como no velho maniqueísmo religioso, tudo está dividido entre os bons e os maus, os heróis e os vilões, o proletariado e a burguesia, a esquerda e os fascistas, uma forma simplista da dialética que ignora a complexidade da sociedade e das tendências políticas.
A visão binária avança até mesmo no identitarismo. No Brasil não existem mais mestiços: ou se é branco ou negro. Embora a maior parcela da população brasileira (45,3%) se declare parda (conceito do Censo Demográfico), quase as análises e estudos de cor da pele junta os mestiços (pardos) aos poucos que se consideram pretos (10%), criando a categoria negro oposta à branca. Componente central do ethos brasileiro, a mestiçagem desaparece da análise sociológica subjugada à visão binária, a identidade do Brasil como nação destroçada pelo identitarismo binário.
No Brasil também não existe mais o centro político. Em várias abordagens, não existe sequer a direita, não existem os conservadores. Quem não for de esquerda, ao menos se declarar de esquerda e manifestar seu apoio incondicional a Lula, será taxado de extrema direita, o vilão contra o herói. No contexto internacional, a síntese de todos os males é o imperialismo americano, um divisor da caricatura binária. Políticos ou governos que ataquem e enfrentem os Estados Unidos são a representação do herói, ganham o título honorífico de esquerda, mesmo que sejam governos autoritários, corruptos e que desrespeitam os direitos humanos, como Nicolas Maduro, na Venezuela, mesmo que seja outro imperialista como o autocrata Vladimir Putin. Por exclusão, todos aqueles lutam ou apenas condenam o governo de Maduro ou repudiem a invasão brutal da Ucrânia pela Rússia são classificados como extrema-direita. O presidente da Ucrânia, Volodymyr Vladimir Zelenski, que comanda uma resistência heroica da brutal invasão russa, é fascista, Maria Corina Machado, que lidera um movimento social amplo, incluindo segmentos importantes da população pobre na disputa eleitoral na Venezuela, é de extrema-direita.
Além da intolerância que tende a provocar, a visão binária na análise política impede a compreensão da complexidade da sociedade e do jogo político, anula as nuances dos múltiplos aspectos e interesses na sociedade, ignora a diversidade das tendências políticas.
Assim, atrapalha as negociações políticas e a realização de alianças, na medida em que não existe meio termo - ou se é de esquerda ou de extrema-direita - o caminho direto para a polarização e o confronto. Ao contrário do que podem pretender, ao rejeitar todos que não são de esquerda, jogam o centro e mesmo a direita no colo da extrema-direita. Com os devidos nomes, a visão binária fortalece Bolsonaro. Ou será isso mesmo que a esquerda binária pretende?
Sérgio C. Buarque, economista