Educação e identidade (III)

Foi no momento da criação dos Estados Nacionais europeus que veio à luz o problema de como dar a cada nação uma identidade própria e inconfundível.

Publicado em 20/08/2024 às 0:00 | Atualizado em 20/08/2024 às 12:12

A vida cotidiana na sua complexidade pode ser entendida como um conjunto de cenários onde se dá a interseção de nossas vidas com a dos outros, e onde em cada um desses cenários eu posso desempenhar um "papel" diferente: professor, pai, cidadão, consumidor, amigo, marido..., sendo que, em cada um deles, eu ajo, falo, sinto de forma diferente e espero, igualmente, ser visto de forma diferente (não quero que meus alunos me vejam como pai ou irmão!). Isso significa que a expectativa presumida dos outros é fundamental para que eu possa forjar minha identidade. Isso não quer dizer que ela seja falsa ou inautêntica, que eu seja uma "Maria vai com as outras!"; significa apenas que a antiga ideia de identidade "única e perene" havia escondido algo de muito importante: que não há construção subjetiva que não seja precedida de relações intersubjetivas. Ou, dito de forma mais simples, o EU de cada um não é uma coisa natural - já que ele só se constitui no social-, não é algo que trazemos conosco desde o nascimento: ele se forma na nossa relação com os outros.

Mas essa noção (identidade) pode alcançar dimensões e envergaduras muito maiores e atingir todo um "povo", toda uma "nação". E aqui, a noção de identidade também vai jogar um papel decisivo.

Foi no momento da criação dos Estados Nacionais europeus (praticamente não existiam países antes do século XVI) que veio à luz o problema de como dar a cada nação uma identidade própria e inconfundível. Esta é uma operação bastante complexa porque implica nosso envolvimento emocional com uma determinada ideia - a de Nação. Por que nós nos emocionamos ao ouvir o Hino Nacional numa Olimpíadas? Por que algo tão abstrato como a ideia de "Nação" mexe tanto com nossos sentimentos?

Já no início da Modernidade houve, por parte daqueles que pensaram a educação, duas preocupações: a de oferecer a cada um a possibilidade de se instruir (ler, escrever e contar) e, por outo lado, de favorecer, através da educação, um novo sentimento: o de pertencer a uma comunidade espiritual, linguística, cultural... reunidas sob o nome de COMUNIDADE/IDENTIDADE NACIONAL. E boa parte da esperança de alcançar esse objetivo residia na cultura, sobretudo na cultura dita "popular". O problema é que para muitos intelectuais ditos "iluministas, aquela cultura popular, sendo pouco racional porque carregada de mitos, simbologias arcaicas, tradicionalismos, religiosidade, etc., não poderia promover o universalismo que a Razão exigia. Daí porque, pare estes, a tarefa da educação escolar era retirar o povo de sua cultura fechada e pouco racional, quer dizer, ainda "infantil" para torná-la "adulta", racional e universal. A identidade de uma nação moderna se reconhecia por sua adesão a valores ditos universais: democracia, republicanismo, direitos humanos, laicidade...). Mas para outros intelectuais, ditos "românticos" a coisa era diferente: era na cultura do povo - particular e única- onde residia a possibilidade de construção da identidade nacional. A riqueza da Humanidade não estava em sua homogeneização pelo "universal", mas pela diversidade de culturas nacionais. E foi assim que a "cultura popular" foi retomada e valorizada por intelectuais que queriam construir a "alma" da Nação e não aceitavam que a racionalidade técnica do capitalismo destruísse os laços de solidariedade e pertencimento comunitário que as sociedades tradicionais preservavam.

Observem, assim, a ambiguidade aqui presente: veio dos "progressistas" (Iluministas) a ideia de que a cultura do povo não serviria para a construção da identidade nacional, e veio dos "conservadores" e "tradicionalistas" (Românticos) a ideia de valorização da cultura do povo como base daquela construção. E foi assim que muitos "tradicionalistas" preferiam que o povo ficasse longe da "pasteurização cultural" escolar (lembram de Gilberto Freyre?). Numa escola que propunha o universalismo da Razão, a cultura popular teria dificuldades de penetrar nela.

Quando vemos, hoje, elementos da cultura popular aqui do Nordeste (capoeira, frevo, cordel, maracatu...) participarem dos conteúdos de ensino e das atividades escolares normais, nós não desconfiamos que isso foi o resultado de uma longuíssima batalha "cultural" para fazer com que a produção simbólica das camadas populares fosse finalmente reconhecida como "cultura" e não simplesmente como "folclore".

O problema, na verdade, dizia respeito ao fato de que certa ideia infantilizada de "povo" ("consciência ingênua" e facilmente manipulável) terminava por contaminar a sua cultura: o povo é infantil porque sua cultura também o é! Como a proposta racionalista era extirpar aquela infância da razão, o povo e sua cultura também deveriam se transformar, e a escola era o lugar ideal para essa transformação da identidade popular.

Vejam, para concluir essa série, o quanto é complexa a relação entre intelectuais e as classes populares: os primeiros com aquela irresistível tendência para dizer o que os segundos "são" e o que eles "deveriam ser". E as classes populares tentando resistir a essas investidas normativas, em que os "OUTROS" (em geral não pertencendo a essas camadas) se acham legitimados a dizer sobre elas o que elas mesmas resistem a aceitar como verdade...

(Fim da série)

Flávio Brayner, professor emérito da UFPE e visitante da UFRPE

 

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