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Violência processual: quando a lei é usada como instrumento de vingança

Para além da vibração com a conquista de medalhas, os Jogos Olímpicos de Paris atraíram nosso olhar para a bravura e desigualdade das mulheres...

Publicado em 24/08/2024 às 0:00 | Atualizado em 24/08/2024 às 11:31

Doze das 20 medalhas que o Brasil obteve nas Olimpíadas 2024, em Paris, resultaram do esforço de atletas mulheres. Num país onde o apoio aos esportistas ainda precisa evoluir para além do Bolsa Atleta e alguns patrocínios da iniciativa privada, o gênero feminino é duplamente penalizado. É a vida cotidiana sendo replicada na arena das disputas desportivas. Possivelmente, a situação mais emblemática tenha sido a da corredora Flávia Maria de Lima, que tornou pública sua luta para não perder a guarda da única filha, de seis anos de idade. Corredora de inegáveis méritos (ouro no Campeonato Sul-Americano Sub-23 em Montevidéu 2014, prata nos Campeonatos Sul-Americanos de Cartagena 2013 e Lima 2015, bronze nos Jogos Pan-Americanos de Toronto 2015 e vencedora do quinto título no Troféu Brasil de Atletismo), Flávia encerrou sua participação nos Jogos Olímpicos na 15ª posição da classificação geral da repescagem, ficando fora das semifinais.

Sua voz, no entanto, alcançou altura de pódio, replicada com a força da imprensa, das redes sociais e da ressonância em outras mulheres que, como ela, se deparam com a maternidade sendo utilizada como antídoto para o desempenho profissional ou, ao contrário, a busca pela excelência como obstáculo para o exercício pleno de ser mãe. Em diversas entrevistas concedidas aos veículos de comunicação, ou por meio de depoimentos transmitidos em sua conta pessoal, Flávia narrou o drama de estar sendo bombardeada por uma contenda jurídica que utiliza o convívio com os filhos como elemento de controle e exibição de poder. Ela se refere a essas escaramuças como "terrorismo jurídico". Para os operadores do Direito de Família, trata-se de uma estratégia não apenas usual, mas incrivelmente funcional, ainda nos dias de hoje, quando a equidade de gêneros é pauta prioritária.

Quando o Judiciário é acionado com a finalidade de intimidar ou constranger uma das partes envolvidas em litígio é configurada a violência processual. O uso da lei de maneira abusiva, como instrumento de vingança, infelizmente, é prática recorrente no Direito de Família. Os magistrados precisam estar sempre atentos para detectá-lo.

Nos testemunhos que tem propagado, Flávia discorre sobre como a ameaça de "abandono parental" pende sobre sua cabeça todas as vezes em que precisa se ausentar em viagens de trabalho. Sim, o atletismo é a profissão de Flávia, como ela explicou em entrevista ao Correio Brasiliense (02/08/2024): "Por incrível que pareça, a minha profissão é o ponto que está sendo julgado. Sim, competições que participei foram protocoladas alegando que eu abandonei a minha filha. No começo até fiquei aterrorizada, amedrontada, fiquei com medo de competir, de viajar, até pensei em desistir. Mas com um acompanhamento psicológico e conversando com minha mãe, que esteve me apoiando todos os dias, eu resolvi lutar e buscar os meus sonhos, vir atrás de tudo aquilo que eu sempre sonhei", disse ela.

O posicionamento da mulher no mercado de trabalho sofre profunda alteração quando ela decide levar a termo uma gravidez, tenha sido ela planejada ou não. Os homens seguem intocados pelo compromisso de se responsabilizar pela nova vida que trazem ao mundo. Fora dos palcos esportivos, o modus operandi é similar. Quantas mulheres não foram sumariamente demitidas após cumprirem o prazo legal que lhes garante o mínimo de 120 dias a título de licença maternidade? O argumento segue uma lógica masculina e excludente de que, daquele ponto em diante, o gênero feminino fica diminuído em sua capacidade produtiva por conta da função reprodutiva.

Alguém tem dúvidas de que, caso não houvesse uma legislação trabalhista que impedisse, a demissão sumária de gestantes seria efetivada por grande parte dos empregadores? Se já é difícil conquistar espaços numa empresa com mentalidade orientada para as "vantagens de não parir", fazê-lo depois da maternidade torna a subida ainda mais íngreme e escorregadia. A lógica que se põe em marcha, a partir dessa condição biológica, é reversa, injusta e danosa, partindo do pressuposto que os encargos decorrentes da maternidade gerariam perdas para os interesses capitalistas. A mesma questão, entretanto, jamais é colocada diante da paternidade.

A realidade da mulher que precisa ou quer trabalhar fora, ascender e se realizar também profissionalmente, só é possível graças a uma rede de apoio, e geralmente ela vem de outras mulheres. "Eu só segui sendo atleta graças ao apoio de uma amiga que, fizesse sol ou chuva, ia todos os dias em casa cuidar da minha filha para que eu pudesse treinar", revelou Flávia em um de seus tocantes testemunhos. Avós, irmãs, tias, vizinhas, amigas, cuidadoras se revezam entre si para que mulheres brasileiras possam ter o direito de trabalhar fora de casa.

Para além da vibração com a conquista de medalhas, os Jogos Olímpicos de Paris atraíram nosso olhar para a bravura dessas mulheres atletas e para a desigualdade das condições que lhes são ofertadas. Olhamos com admiração e respeito para todas elas. E devemos sempre lembrar que, antes de ouvir o Hino Nacional e segurar o ouro em suas mãos, Rebeca Andrade teve o apoio de uma mãe solo com oito crianças para sustentar e zelar; uma tia que começou a trabalhar num ginásio e decidiu levar a futura campeã consigo. Muitas mãos, de muitas mães, fazem do Brasil um motivo de orgulho. Elas precisam de apoio, não de punição.

Gisele Martorelli , advogada

 

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