A boa morte
Três dias em Cachoeira, uma pequena cidade em uma região duas vezes côncava, o recôncavo. No caminho, uma paradinha em Santo Amaro....

A Festa da Boa Morte na Bahia é promovida pela Irmandade da Boa Morte há mais de 200 anos. É uma entidade afrocatólica composta por mulheres, descendentes de escravizados, que foi responsável pela alforria de muitos. A morte seria a libertação dos martírios da escravidão, promovendo a religação entre Aiê (mundo físico) e o Orum (mundo espiritual). Cheia de simbolismo, expressão do sincretismo catolicismo-candomblé, a festa lembra a luta e a resistência.
Três dias em Cachoeira, uma pequena cidade em uma região duas vezes côncava, o recôncavo. No caminho, uma paradinha em Santo Amaro, casa de Dona Canô, mãe de Caetano. Uma olhada no rio para verificar se purificaram o Subaé, como implora a canção.
Cachoeira é Monumento Nacional e Cidade Heroica, tem o seu período de grandeza lembrado pela ponte de ferro (lembra a Boa Vista do Recife) e madeira importada da Inglaterra, sobre o rio Paraguaçu. Foi construída por ordem do imperador e inaugurada por ele como prêmio pela bravura ao expulsar os portugueses da Bahia. Se tornou um entreposto comercial importante, muitas igrejas foram construídas pela comunidade com auxílio do império, incontáveis casarões bem conservados, outros nem tanto. Ruas e mais ruas retratando a época, exceto pelo excesso de fios entre postes, um mal dos nossos dias no país inteiro. Foi palco da luta pela independência, proclamando D Pedro I como Regente em junho de 1822, antes do grito do Ipiranga, sendo sede do governo provisório do Brasil.
Moradores com elevada autoestima, turistas brasileiros e muitos estrangeiros, um ambiente com energia, beleza e alegria salientando a importância da luta contra o racismo. Chama à reflexão e a um pedido de desculpas por tantas vezes ter brincado com assunto tão sério e ter usado no dia a dia expressões inapropriadas. Quantas vezes nos referimos a "clarear as ideias", "esclarecer" (melhor usar explicar), "disputar a negra" (melhor de três e não a referência ao prêmio oferecido ao patrão vencedor de um jogo), expressões enraizadas no racismo estrutural. "Mercado negro, "denegrir" (manchar uma reputação antes "limpa"), a coisa está preta, ovelha negra, meia tigela" (trabalho forçado nas minas e se não atingiam a meta só recebiam meia tigela de comida). São muitas que devem ser evitadas. Perdão por tantas vezes as ter utilizado.
Na parte profana, samba com Dona Dalva, 96 anos, doutora honoris causa da UFRB, matriarca do samba de roda (o original), no topo da hierarquia da Irmandade da Boa Morte, depois de retribuir um abraço, abriu um sorriso lindo e disse: vocês são a minha alegria. Continuou balançando os quadris na medida em que a artrose lhe permitia.
Entre um e outro grupo musical, sentar-se na calçada alta para recuperar as energias, mas havia senhoras de pé merecendo um lugar. Concedido o espaço, vem um senhor e diz:
Se continuar se afastando, o Sr. vai acabar caindo no fim da calçada pois tem muito velho aqui. Essa ao seu lado é minha esposa há 42 anos.
Tudo isso, com a mesma mulher? Vocês são Ararinhas-azuis, aves raras, em extinção. Gargalhadas.
Acredito no amor e vou dar um exemplo da força dele. Aqui perto existia um delegado arbitrário e malvado. Já chegava batendo e se fosse um preto o pau comia. Toda vez que passava por minha mulher, na época sabendo que era minha noiva, soltava graça, chamava de gostosa. E eu sem poder reagir. Aguentei. O Sr. acredite que no dia que eu me casei, ele morreu.
Morreu?
Na hora do casamento, de morte morrida até hoje. É ou não é forte o amor.
E o Sr. acha que foi uma boa morte?
É relativo. Lá prá ele, acho que não, pois deve ter reencarnado no inferno, mas cá prá nós, foi uma morte boa, não vou negar.
Sérgio Gondim, médico