Artigo de Dayse de Vasconcelos Mayer: "Mulheres empoderadas"
Fui mimoseada com o livro a "A Mesa de Deus – Os alimentos da Bíblia" de autoria de Maria Lectícia Cavalcanti... Leia artigo na íntegra

Fui mimoseada com o livro a “A Mesa de Deus – Os alimentos da Bíblia” de autoria de Maria Lectícia Cavalcanti. A obra, com capa dura, é um esmero gráfico e digna de ser lida diferentes vezes. Guardo em minha estante a obra anterior integrada por receitas primorosas, sempre consultadas. Lembrei-me, ato contínuo, de uma outra publicação recebida na década de 80, escrita por Maria de Lourdes Modesto – “a guardiã do patrimônio gastronômico português”.
Maria Lectícia e Maria de Lourdes se igualam no campo do empoderamento feminino. Conseguiram identificar as suas potencialidades, aprenderam a reconhecer os seus limites, lograram encarar seus temores, assumiram os riscos do cotidiano e conquistaram o direito de definição dos seus objetivos de vida confiando, nomeadamente, na intuição. Trocaram, nesse caso, a cultura da coitadinha pela vida na selva – sempre confusa, dúbia e competitiva. Embora exista uma distância etária entre as duas mulheres, não é a idade que separa ou aproxima os seres humanos. São os interesses e valores revelados ao longo da existência (Modesto faleceu em 2022 aos 92 anos).
O que parece característico às duas mulheres é o não receio da concorrência com outras escritoras. Afinal, inteligência significa também autoestima elevada, destemor e não sabotagem do crescimento e ascensão do outro. Todavia, as duas autoras diferem em alguns aspectos. Modesto era apaixonada pela liberdade e tudo fez para alcançá-la. Em busca dos seus sonhos, largou o Alentejo onde vivia com a mãe divorciada e três irmãos. Seguindo a melodia que hipnotiza, caminhou firme atrás do flautista sem jamais revelar traços de arrependimento.
Foi na televisão portuguesa que Modesto apresentou, ao longo de doze anos, o programa culinário que lembrava o de Ana Maria Braga. Apreciadora do teatro, tornou-se conhecida com a peça de Molière “Monsieur de Pourceaugnac” que não tinha qualquer relação com a culinária, exceto quando a protagonista devorava uma maçã no palco.
Maria de Lourdes foi ousada ao aceitar a condução de um programa televisivo sobre culinária na RTP. Na véspera da apresentação, enviou um telegrama à mãe “Veja televisão hoje nove horas”. Nesse tempo, só havia um canal e a genitora precisou se arrastar, cheia de curiosidade, até o café da esquina.
E foi a experiência culinária na TV que Modesto soube converter em material literário impressivo. Por outras palavras, o programa solo foi um saltador de molas ou trampolim. A receita escolhida para a primeira apresentação foi alcachofras ao molho. Na época, a cozinha francesa exótica e requintada. estava em alta em Portugal. Concluída a feitura e apresentação da iguaria, os espectadores escutaram um gemido alto seguido da frase - “Humm, que maravilha! ”.
A inteligência e obstinação de Modesto permitiram que ela atingisse seu grande desejo, só na aparência utópico: afirmar-se como escritora sem abandonar as suas raízes alentejanas. A partir dessa decisão, ela se converteu na figura mais proeminente da culinária portuguesa do século 20 e começo do 21. Nascia, naquele exato momento, a profissional espirituosa e de humor franco. Sua relevância para a gastronomia foi tão reconhecida que a 10 de junho de 2004, nas comemorações do Dia de Portugal, Camões e das Comunidades Portuguesas, Maria de Lourdes Modesto foi condecorada pelo Presidente da República com o grau de Comendadora da Ordem de Mérito.
A vida de cada homem é formada por ciclos. A escritora viveu uma sucessão deles. Dizem que ela desistiu da televisão por conta da margarina. Usando o pseudônimo de "Francine Dupré", iniciou a escrita de receitas culinárias para as campanhas da margarina Vaqueiro. A deliberação teria irritado a direção do programa. Miguel Esteves Cardoso – cronista do “Expresso” - contesta o fato. Registra que a propaganda não teve qualquer relevância.
Até porque a margarina não tinha a má fama dos dias atuais. Contudo, as histórias sobre a “gordura” com reputação venenosa se intensificaram. Numa dessas narrativas, o marido se desentende com a esposa porque ela estava seguindo, irracionalmente, as receitas de Modesto e eliminado a manteiga do uso doméstico.
Estavam em visita a uns amigos quando um cão de nome Baloo ingressa na sala. A anfitriã pediu que servissem o lanche da tarde ao animal: pedacinhos de pão com manteiga. O animal chegou perto do prato, cheirou, cheirou e não revelou interesse. Foi então que a senhora gritou: ah! Colocaram margarina no pão de Baloo. E o marido da visitante esbraveja: estás a ver, mulher! Nem Baloo tolera margarina.
Modesto abandonou a televisão motivada pelo estresse seguido de forte depressão. Todavia, tal decisão tornaria factível a dedicação integral à escrita de livros. Sua obra mais conhecida e respeitada, inclusive no Brasil, é a “Cozinha Tradicional Portuguesa”.
Foram mais de trinta edições produzidas pela Verbo: em torno de 500 mil exemplares vendidos e muitos problemas jurídicos com o editor. Segundo o “Expresso”, foi Miguel Esteves Cardoso quem resgatou Maria de Lourdes Modesto “do seu jardim de estrelícias e orquídeas de Alapraia para colaborar com ele no suplemento ‘Preguiça’, do Independente”.
Dayse de Vasconcelos Mayer é professora e advogada.