36 anos da Constituição e o debate político

O sucesso ou fracasso da representação política que escolhemos é gasto debitável na conta única do eleitor, que não é conta conjunta com os eleitos.

Publicado em 12/10/2024 às 0:00 | Atualizado em 15/10/2024 às 16:36

O dia 5 último marcou mais um aniversário da Constituição de 1988, o seu trigésimo sexto. Não sem razão nominada como Carta Cidadã pela atitude de repúdio ao passado autoritário de ditadura, vem sendo, de uns tempos para cá, infelizmente invocada para, no fundo, fazê-la definhar de inanição até ir a óbito em algum momento. Também em outubro, no dia seguinte (dia 6), os mais de cinco mil Municípios brasileiros elegeram (ou reelegeram) Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores. Como é da tradição, não faltaram "especialistas" na grande mídia para repercutir o diagnóstico de que a recente campanha eleitoral foi das mais desafiadoras desde a disputa presidencial de 2018 e a polarização que a isso se seguiu.

Disse Goethe, dos mais importantes escritores, poetas, dramaturgos, romancistas e ensaístas da Alemanha: "A democracia não corre, mas chega segura ao objetivo". Pois então reflitamos juntos: quando muitos normalizam candidaturas surrealistas, absurdas, quando não bizarras, sejam as marcadas pelo escracho, sejam as que são puro retrocesso, sejam as que abusam do poder econômico para a disseminação de discursos de ódio e desinformação (fake news), impõe-se a mea culpa do restante de nós. Aonde estamos errando? Com efeito, enquanto parcela do eleitorado não se importa com o debate político e outros se extasiam com o festival de baixarias, cabe se perguntar enquanto ainda é tempo: este é o presente que a Constituição merece, ela que foi fruto de tanta luta e de tantos debates até ser promulgada?

Em entrevista (30/9) ao programa Roda Viva da TV Cultura, a Ministra Cármen Lúcia, do STF e atual Presidenta do TSE, abordou esses e outros temas. Deu uma aula. Insistiu no que deveria ser o óbvio: que não se deve dar ouvidos, nem julgar penalmente inimputável, aquele que se atreve a sustentar que a liberdade de expressão é um cheque em branco ou um salvo-conduto para inviabilizar o processo político, provocando o envenenamento da democracia até que, vindo ela a óbito, lhe substitua o Cavalo de Tróia do neofascismo.

Não é desculpa a memória curta dos traumas do passado das torturas, mortes matadas, exílios e cassações impostas (inclusive a magistrados), supressão do habeas corpus, fechamento do Congresso, perseguição especialmente violenta a advogados e jornalistas, seguida, depois da redemocratização, por períodos de recorrentes crises, desaguando nos criminosos acontecimentos do 8 de janeiro de 2023 na Praça dos Três Poderes em Brasília. Não é plausível, nem razoável, e não só não deve, existir qualquer anistia, nem pena alternativa, nem clemência, aos golpistas.O erro da Lei de 1979 não pode ser repetido. Que não nos tornemos uma população de zumbis. Cérebro pouco exercitado atrofia.

A serpente do golpismo até recuou, mas definitivamente não teve arrancadas as presas, nem acordou para Jesus, nem, portanto, perdeu o apetite ou virou boazinha.Por vezes adota, na forma humana, um discurso sedutor, mas continua, nas entranhas, uma ameaça. É lobo em pele de cordeiro quando lhe convém. Como animais astutos que são, dão um passo atrás para, depois, pegar impulso e dar outro passo à frente, em novo ataque. É assim que funciona o seu mínimo existencial.

A responsabilidade incumbe a cada eleitor e precisa ser ensinada às novas e futuras gerações: a Constituição e o que ela representa não se tornam culturalizadas por combustão espontânea ; é preciso que a população participe, vote conscientemente. E, sobretudo, que defenda o legado que isso abriga, apesar dos solavancos do extremismo. A democracia, assim como uma planta, não sobrevive de brisa. Coaches, supostos malucos-beleza e falsos profetas, mitômanos e pessoas dispostas a tudo, não merecem ocupar postos de poder por razões evidentes, que se resumem ao descompromisso escancarado com o próprio ao texto constitucional. Não se entrega a chave do galinheiro à raposa.

Defesa da Constituição, por sua vez, não é frase de biscoito chinês da sorte. O sucesso ou fracasso da representação política que escolhemos é gasto debitável na conta única do eleitor, que não é conta conjunta com os eleitos. A flecha disparada não volta atrás. O bumerangue da insensatez sim.

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado

 

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