Dayse de Vasconcelos Mayer: "Autópsia de uma guerra conspiratória"

Os valores, ideologias e crenças disseminados pela sociedade são diretamente responsáveis por todas as formas ou modalidades de preconceito

Publicado em 16/11/2024 às 17:53
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O pintor carioca Wallace Pato recebeu a seguinte mensagem de um hotel em Amsterdã: “Desculpe, não aceitamos pessoas negras no hotel".

Fato semelhante iria ocorrer com um imigrante da Costa do Marfim. Um policial de São Paulo usou as palavras “negrinho” “veado” e pau de “c”, ao se dirigir ao trabalhador informal.

Nas duas situações, o preconceito foi o cerne de tudo. Ele implica o conhecimento das raízes históricas, psicológicas, culturais e dinâmicas estruturais inconscientes do meio e do próprio indivíduo.

Os valores, ideologias e crenças disseminados pela sociedade são diretamente responsáveis por todas as formas ou modalidades de preconceito: racial ou cor, misoginia ou sexismo, classe social ou classicismo, orientação sexual, consumo de drogas, direitos LGBT, religioso, cultural, contra deficientes físicos, migração, aquecimento global...

A verticalização dessa questão passa pelo entendimento de uma guerra com características próprias e singulares: a guerra cultural ou “Culture War”.

A expressão “guerra cultural” é atribuída a James Davi Hunter, sociólogo da Universidade de Virgínia e ao político republicano Patrick Buchanam, mesmo sendo conhecida desde o século 19.

Embora seja um conceito antigo, algo permaneceu imutável no tempo: o antagonismo entre valores tradicionais ou conservadores e valores progressistas ou liberais. O primeiro é apanágio da extrema-direita; o segundo é atributo da esquerda.

A vitória eleitoral do outsider Donald Trump, com a sua retórica misógina e seu discurso racista, desumano, conspiratório e homofóbico concorreu para exacerbação desse quadro.

Afinal, os homens estão cada vez mais tolerantes com a obscenidade, a libertinagem e a corrupção. Um exemplo pouco divulgado é a simulação por Trump, durante um dos comícios, de sexo oral com o microfone. Mesmo com um cadastro registrando 88 acusações criminais pendentes,a capacidade de escolha do povofoi miseranda.E Elon Musk, com a sua plataforma social X e a divulgação de tweets, foi o figurante principal da eleição norte-americana. O poder das redes sociais com mensagens visualizadas mais de dois mil milhões de vezes e as milhares de fotos fabricadas pela Inteligência Artificial seriam capazes de eleger até mesmo um primata. É fácil de entender: estamos nas mãos de superbilionários e detentores de fortunas superiores ao Produto Interno Bruto da grande maioria dos países do planeta.
Tais considerações convergem para uma perquirição relevante: O que mais pesou na decisão dos americanos: a cor da pele ou o sexo de Kamala Harris? Por certo, o espectro do homem forte prevaleceu sobre as instituições, se sobrepôs ao Estado e ao Direito e desmereceu o slogan de Obama - os EUA são um exemplo para o mundo.
Os brasileiros podem conhecer essa guerra lendo a tese escrita por Frederico Rios Cury dos Santos “A Retórica da Guerra Cultural e o Parlamento Brasileiro – a argumentação no impeachment de Dilma Rousseff” e o livro “Entre o mundo e eu”, escrito por Ta-Nehisi Coates no formato de carta dirigida ao filho adolescente. O jornalista norte-americano deixa assente as agruras e o sofrimento de viver num corpo negro. Eleito pelo New York Time como uma das melhores obras do século 21, nele vamos encontrar uma forma de pessimismo imódico. Para Coates, pouco importa que o negro tenha nascido numa favela ou num condomínio de luxo. Ele será sempre avaliado pela cor da pele e viverá cercado do medo. Pinçamos um trecho para exemplificar essa ideia: “mas já tinha medo antes de você nascer, e nisso não fui original. Quando tinha a sua idade, as únicas pessoas que conhecia eram negras e todas estavam intensamente, inexoravelmente, perigosamente, com medo”. Contrariamente a tal percepção, esposamos a opinião de que o negro é socialmente aceito quando goza de prestígio político, social, intelectual e econômico. Mas há uma verdade inquestionável: ter poder não alveja a pele, apenas nubla o olhar.
Recentemente, um deputado levou ao Congresso Nacional, o livro “O avesso da pele” – vencedor do prêmio Jabuti de 2021. A obra, cuja essência é o preconceito, foi lida como um texto pornô. E algo nos abismou nesse episódio triste: o nosso representante,desconhecendo o conteúdo do livro, abre uma página e lê e relê um trecho de sexo chulo. E foi essa folhinha que atiçou o fogo sexual do parlamentar. Esse episódio mexeu com a memória dos tempos do regime de exceção quando, por influência do gal. Golbery, o Ministro da Justiça Petrônio Portela mandou censurar a obra de Shere Hite – “O Relatório Hite”. Estávamos no ano de 1979 e eu já havia antecipado a compra do meu exemplar. Na sala do Secretário-Geral Syleno Ribeiro acontecia um “interview”com uma jornalista do Estadão. A jovem profissional de imprensa, de forma ingênua, confessa que ainda não havia lido o Relatório. Após essa inconsiderada revelação, ouviu a crítica irônica de Syleno: A minha entrevistadora não fez a lição de casa. Admitiu conhecer unicamente o essencial do “Relatório Hite”. Acontece que o essencial para ela pode ser o acidental para mim. “Mandem recolher, imediatamente, todos os exemplares das livrarias”. E assim aconteceu. Resta saber se o nosso deputado-leitor deseja reproduziruma passageminfeliz do crepúsculo da ditadura.
Dayse de Vasconcelos Mayer é doutora em ciências jurídico-políticas

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