Aprender com as derrotas para não repetir erros

Tudo leva a crer que, assim como aconteceu em 1972, faltou ao Partido Democrata em 2024 escutar o eleitorado. Escutar com compromisso.

Publicado em 23/11/2024 às 0:00 | Atualizado em 23/11/2024 às 7:49
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O ano era 1972. Bill Clinton era um jovem de vinte e poucos anos, estudante de Direito na Universidade de Yale. Mas naquele ano, os estudos das leis americanas não eram a sua prioridade. Militante do Partido Democrático desde a adolescência, Clinton resolvera trancar sua matrícula para se dedicar a sua verdadeira paixão, a política. Foi assim que acabou assumindo a coordenação, no âmbito do estado do Texas, da campanha de George McGovern à presidência dos Estados Unidos. McGovern fora escolhido pelas primárias do partido para enfrentar o então presidente Richard Nixon, que concorria à reeleição. Mas não foi uma escolha fácil para os delegados democratas. Na época, o Senador George McGovern liderava a ala mais progressista do Partido Democrático, não desfrutando, por isso mesmo, do apoio da velha guarda dentro do partido. Ele era o equivalente a Bernie Sanders ou a Kamala Harris no cenário contemporâneo. Para Clinton, entretanto, não poderia haver candidato mais autêntico, representando o caminho que o partido deveria trilhar.

Na noite de 7 de novembro, Clinton acompanhou a apuração dos votos à frente de um batalhão de voluntários e cabos eleitorais no QG da campanha texana do partido na cidade de Austin. Suas feições não revelavam preocupação ou ansiedade. Mas sim tristeza. Ele já sabia que seu candidato sairia derrotado naquela eleição.

Bill Clinton tirou lições valiosas daquela campanha eleitoral de 1972. Vinte anos depois, quando ele mesmo seria o candidato democrata à presidência, seu aprendizado viria a moldar uma campanha vitoriosa, que frearia o que todos imaginavam ser uma espécie de hegemonia republicana iniciada com a ascensão de Ronald Reagan à Casa Branca.

Em sua autobiografia, Clinton relata um episódio que ocorreu na reta final da campanha de 1972 e que, como uma boa lição, ele jamais esqueceu. Viajando pelo sul do Texas, ele parou num posto de gasolina para reabastecer. Ali, ele foi atendido por um jovem americano de descendência mexicana com quem puxou conversa. Ao término do papo, Clinton perguntou se ele iria votar em McGovern. O jovem respondeu que não poderia. E explicou que não daria o seu voto a McGovern por ele ter abandonado o seu candidato a vice-presidente, Eagleton, colocando outro em seu lugar. Segundo o jovem frentista, "muita gente tem problemas. Mas não se abandona amigos".

O frentista referia-se a um episódio que aconteceu após as primárias do Partido Democrata. Na ocasião, a imprensa noticiou que o Senador Thomas Eagleton, candidato a vice na chapa de McGovern, havia enfrentado problemas com depressão e recebido tratamento em clínicas psiquiátricas. A exposição da ficha médica de Eagleton no noticiário foi o suficiente para gerar um escândalo de grandes proporções a ponto de inviabilizar a permanência de seu nome na chapa de McGovern.

Clinton nunca esqueceu o conselho do frentista. Sempre se lembrava daquela conversa quando, durante sua própria campanha para presidente, interagia com o eleitorado hispânico.

Nem é preciso dizer que a tumultuada campanha de 1972 e a derrota de George McGovern traumatizaram o Partido Democrata. Seus estrategistas passaram a defender posturas mais centristas e menos radicais. De fato, esse posicionamento de colocar em banho maria os políticos da ala mais à esquerda do partido somente veio mudar após a eleição de Barack Obama. A presidência de Obama legou ao partido o desafio de ousar.

"Aqueles que não conseguem lembrar o passado, estão condenados a repeti-lo". A frase do filosofo George Santayna, do início de século XX, não poderia ser mais atual. Contudo, nem sempre conseguimos identificar a recorrência de erros do passado, mesmo quando dele nos lembramos.

Plenamente conscientes dos problemas enfrentados pelo partido em eleições pregressas, em especial aquelas realizadas em tempos conturbados, as lideranças do Partido Democrata buscaram tomar todas as precauções para não repetir erros. O foco, claro, recaiu sobre a experiência da tumultuada eleição de 1968. No final das contas, para os democratas, a campanha de 2024 despontava com características semelhantes às de 1968. Primeiro, ambas foram marcadas pela decisão dos presidentes em exercício de não concorrer à reeleição. Segundo, a convenção nacional do Partido Democrata de 2024 aconteceria, como de fato aconteceu, na cidade de Chicago, em meio a manifestações, lideradas por universitários, contra a Guerra em Gaza. Ali, pois, estavam reunidos todos os elementos de um deja-vu. Em 1968, as manifestações contra a Guerra no Vietnam terminaram em confronto com a polícia e contaminaram, sobremaneira, os trabalhos dos convencionais. As manifestações de 2024 só não replicaram os tumultos de 1968 porque os dirigentes do partido se preparam para o pior, articulando com a prefeitura local e com as forças policiais para que não houvesse violência na repressão aos protestos. No restante do país, o partido negociou com as universidades para conter as manifestações nos campi. Foi a forma encontrada para evitar que erros cometidos pelo Partido Democrata na eleição de 1968 não fossem repetidos em 2024.

Mas se os estrategistas democratas se preocuparam em não cometer os erros da campanha de 1968, esqueceram-se dos erros cometidos pelo partido na campanha de 1972. Vale lembrar que os problemas enfrentados pela campanha dos democratas em 1972 eram de natureza diversa daqueles que surgiram em 1968.

A candidatura de McGovern em 1972 deixou o partido dividido, e levou um contingente razoável de eleitores democratas da classe trabalhadora a desertar da agremiação. Foi a primeira vez desde o New Deal de Franklin Roosevelt que sindicalistas votaram no Partido Republicano. Esse foi um fato que se repetiu em 2024.

Talvez o mais proeminente dos problemas da campanha democrata de 1972 foi a desconexão entre as lideranças políticas do partido e uma significativa parte do eleitorado. Muitas das promessas de campanha anunciadas pelo Partido Democrata não atendiam aos anseios do eleitorado, sobretudo o eleitorado masculino e aquele apenas com o ensino médio. Novamente, não muito diferente do que se passou em 2024.

Tudo leva a crer que, assim como aconteceu em 1972, faltou ao Partido Democrata em 2024 escutar o eleitorado. Escutar com compromisso. Escutar como fez o jovem Bill Clinton quando conversou com o frentista texano.

Ricardo Rodrigues,  jornalista e cientista político,

 

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