Dayse de Vasconcelos Mayer: "O golpe de misericórdia"
O tempo sempre nos rouba a frescura das flores; cores, a lembrança e a própria sanidade. A única certeza que carrego é essa: era afilhada da minha mãe
O nome eu esqueci. Era algo parecido com Belina. O tempo sempre nos rouba a frescura das flores; as cores, a lembrança e a própria sanidade. A única certeza que carrego é essa: a moça era afilhada da minha mãe e bem mais velha do que eu.
Ela sempre adentrava em nossa casa como se fosse a esperança: a clássica e ilusória esperança de me ofertar liberdade e de poder namorar o risco. Pelo menos por algumas horas do dia.
Mas toda felicidade é interina. Numa manhã qualquer, acordei com a família em “abalo sísmico”. A frase não variava: “Belina se perdeu”.
Puxa vida, será que não havia uma maneira de encontrar a minha companheira de folguedos ingênuos? Mas o buchicho prosseguia. E terminou com uma frase difícil de compreensão em tempos de inocência: Uma mulher “perdida” não pode ingressar em nossa casa.
Foi o golpe de misericórdia! Como era possível alguém se perder, ser encontrada e, na sequência, penalizada?
Tudo empiorou quando a minha avó, uma senhora avançada para o seu tempo, iniciou uma história disparatada: uma mulher ascendeu ao último andar de um edifício e destroçou um travesseiro.
As penas alvas começaram a flutuar devagar e de forma desordenada até esvaecerem no horizonte. Na calçada, crianças saltavam alto na tentativa de recompor o recheio, mas logo perceberam a inutilidade do gesto.
Recordei essa historiola quando li, há poucos dias, o epílogo de um processo-crime iniciado em 2015. A vítima foi o coordenador pedagógico de uma instituição religiosa do Recife. Atribuíram o delito a dois garotos que estudavam no educandário em que o assassinado trabalhava.
Nada relacionava os meninos com o crime, exceto a amizade normal entre educador e educando. As provas colhidas pelos experts configuravam um restolho de pouca criatividade: fragmentos de supostas impressões digitais que foram infligidas, erradamente, aos dois adolescentes.
Embora eu não fosse penalista, minha objetividade e argúcia estavam a serviço da verdade. Era impossível aceitar que dois alunos de família religiosa e com ficha criminal irreprochável fossem julgados com base em amostras precárias.
Persegui o caso com obstinação. Até participei das audiências do rapaz mais jovem, assistido por um excelente advogado. Em cada fase do processo eu me convencia da presença astuta da injustiça. Todavia, sempre ouvi dizer que Deus protege os inocentes. Assim aconteceu.
Os jovens foram absolvidos, mas as manchetes permanecem nos arquivos dos media, na memória dos estudantes, da família e da sociedade. O tempo poderá sempre ressuscitar os interrogatórios e os pesadelos noturnos.
Afinal, minha avó tinha razão: a honra se assemelha ao voo daquelas plumas cândidas ou quaradas. Sem uma boa história, nada somos. Nove anos foram necessários para uma nova investigação e descoberta: o coordenador pedagógico, com 49 anos, poderia, finalmente, encontrar a paz.
A Polícia Federal e o Instituto de Criminalística descobriram que os fragmentos das digitais não eram dos colegiais. As provas dessa vez eram inquestionáveis.
O novo inquérito, conduzido por um delegado competente, foi encaminhado ao Ministério Público de Pernambuco que concluiu, perante as evidências, que o assassinato foi cometido pelo namorado do falecido, após uma noite regada a álcool e filmes pornô.
Na denúncia, a eficiente promotora de Justiça ressaltou que o professor foi trucidado com pancadas produzidas por um ferro de passar roupas com o auxílio de um cabo de energia do mesmo utilitário doméstico.
Aceita a nova denúncia pela 1ª Vara do Júri da Capital, uma indagação ficou sem resposta: por que levaram tanto tempo para solucionar um caso em que todas as evidências estavam diante do olhar do investigador menos experiente?
Justiça demorada é justiça falha ou injustiça. Justiça que envolve incompetência, negligência das autoridades e amargura ou ansiedade para seres inocentes deve receber o nome de crueldade.
Infelizmente, o direito é produto dos homens, mesmo o direito fruto de reconhecimento (o direito natural).
Mesmo na figura do julgador mais austero e mais brilhante existe sempre o avesso das coisas: o bom e o mau; o modesto e o gabola; o benevolente e o opressivo; o capaz e o incapaz; o ser humano e a fera...O profissional competente para aplicar a sentença pode, algumas vezes, ser dominado pela arrogância e vaidade.
E, diante do espelho, ele dirá: Eu sou o que sou e isso me basta. Por isso é uma utopia aceitar que a justiça é despojada de miopia.
Afinal, ela detém a cravelha do conhecimento e do poder. E o poder é o ingrediente mais trágico e menos humano. Seria preciso- e isso é quase impossível – delimitar o seu sentido, indicar-lhe os traços fundamentais, fixar o seu conceito. Orson Welles logrou algum êxito. Conseguiu eternizar a imagem mítica e mágica do poder no clássico “Cidadão Kane”.
Nos tempos atuais, costumamos atribuir as nossas adversidades e desventuras ao sistema. O sistema somos nós. Justamente por isso a injustiça pode ser a música de fundo no direito.
E, no compasso instrumental, o “crime e o castigo”, como nomeou Dostoievsky, podem dançar um minuete funéreo e algo patético. Sucede a cada segundo.Basta ficar atento aoentardecer ou lusco-fusco, hora em que a verdade desponta, o sono se debate e os equívocos se revelam aos nossos olhos. Feliz 2025.
Dayse de Vasconcelos Mayer, professora e advogada.