Dayse de Vasconcelos Mayer: 'A mulher despojada de idade'
Andy Warhol afirmou que deveríamos permanecer virgens até aos 40 anos para podermos sentir o verdadeiro gozo na segunda metade da nossa existência

Mesmo aquelas que admitem ficar na fila do barco de Caronte, remando alegre e escutando a ópera de Puccini – “Mio bambino caro”, nomeadamente a parte final: “Ma Dio, vorrei morrir “Babbo, pietá, pietá” a conclusão correta é que a teoria do escritor é despojada de verdade.
Talvez seja um jogo de miragem, fantasia, imaginação e insensatez. Afinal, não há idade nem tempo para viver e morrer. E ninguém tem o poder de definir o dia da morte, exceto o livreiro Manuel Pinho, dono do sebo Elizart mencionado no artigo de Rui Castro para a “Folha de São Paulo”.
Flamenguista doente, o livreiro jurou que não batesse as botas antes do jogo do Flamengo contra o argentino Lanús, pela Libertadores. Minutos antes do jogo confidenciou ao amigo: “Imagine se eu ia morrer de véspera que nem peru”. E o livreiro assistiu ao jogo pela TV embora tenha partido muito feliz da vida uma hora após a vitória do seu time.
Embora a vida seja uma sucessão de despedidas – transitórias ou definitivas - eu mesma usei o adeus de forma lacrimante quando fui estudar e ensinar em Portugal.
Liguei para o falecido amigo Syleno Ribeiro e falei aos soluços: “Estou me despedindo porque tenho certeza de que vou morrer muito cedo”. Do outro lado da linha escutei perplexa: “Não achas muito tarde para morrer cedo?”.
Há poucos dias, uma senhora pediu a um escritor amigo que preparasse o obituário ou elogio fúnebre do marido – uma figura pública e já em estado terminal. Solicitou, com insistência, que não esquecesse de dizer que o morto-vivo era uma figura humana, de uma inteligência brilhante e uma bondade singular.
Lembrou, na ocasião, que o marido gostava muito de Nietzsche. Nesse caso, conviria dizer que o quase falecido não se deixou impregnar por tudo aquilo que condenamos ou julgamos censurável, desonesto e corrupto. Ele percebeu o abismo, mas desviou os olhos rapidamente para não ser tragado pelas iniquidades ou improbidades.
Certamente, ela diria melhor se imitasse Isabel, a Católica, quando D. João II faleceu; “Morreu o homem”. Em todo caso, nem tudo é como se quer... Em tudo que já foi escrito eu optaria mesmo pelo verso de Pessoa “na véspera do não partir nunca”.
Mas somos finitos e dessa realidade ninguém foge. Só nos resta, nesse caso, explorar a vida por inteiro sem complexos etários.
Assim pensou Clarice Niskier quando comparou a mulher de 70 anos com o queijo gorgonzola: o queijo que as pessoas adoram na salada, no pão, com vinho tinto ou vinho branco. O queijo delicioso, de sabor e aroma peculiares, invenção italiana com status de iguaria cheia de requinte. E a articulista registra: É caro, podre, contaminado por fungos e dependente, como a iguaria, do mofo. Ainda assim, é “podre de chique”.
Mesmo tendo apreciado o texto de Clarice carregado de humor e inteligência, “juro de pés juntos”, como na Santa Inquisição, que eu não gostaria de ser um queijo gorgonzola.
Quero mesmo o prazer que a minha idade exige - sem excentricidades e impossibilidades. Mas o excêntrico é uma realidade no mundo de hoje.
É o caso do MILF (apócrifo em inglês com o significado de “mãe que eu gostaria de fazer amor) também conhecido como PornHub, o site mais acessado em 2024.
'Por isso não desejo morrer tão cedo'
A idade dessas mulheres é definida também num gíria: “boomers” ou pessoas nascidas entre 1945 e 1964 e que possuem o direito de viver a primavera, em todo o esplendor, na estação do inverno ou do verão. Por isso não desejo morrer tão cedo ou enquanto acreditar que o número de anos vividos não significa condenação social, profissional e sexual.
Para confirmar que tudo isso é possível, anoto um caso recente. Eu estava com duas mulheres atraentes, brilhantes e carregadas de autoestima, tomando um rico Barolo num restaurante recifense.
Uma das duas senhoras – bonita, bem sucedida e jovem (35 anos) - começou a revelar que “anos, amores e taças de vinho não se contam".
A companheira, com 75 anos, manifestava maior comedimento na exteriorização do afeto. Apenas aceitava, com excesso de classe, os acenos amorosos da companheira.
Repentinamente, uma senhora da mesa ao lado teve a rara desventura de fazer um comentário: “Eu ficaria muito feliz se minhas filhas revelassem esse carinho por mim”. A resposta da jovem foi instantânea: “a senhora está equivocada. Ela não é minha mãe, é minha mulher”.
A sociedade atual mudou um pouquinho
Como é possível concluir, a sociedade atual mudou um pouquinho. Não tanto, dirá o leitor. De toda forma, o interesse pela mulher madura de hoje é algo que se assemelha ao livro “La Femme de Trente Ans” do francês Honoré de Balzac, modalidade de manifesto contra o ferrete da idade no ano de 1842.
Deixemos de lado, portanto, a criação de Warhol, o homem que inventou “os quinze minutos de fama”. Logo descobriremos, sem inversão do nosso tempo, que o etarismo só existe em nossa cultura e que os supostos efeitos da menopausa servem apenas para carimbar, lindamente, a maturidade e o prazer da mulher após os 60.
*Dayse de Vasconcelos Mayer é doutora em ciências jurídico-políticas.