Sem ordem nem destino
Viver em território sob a tutela de facções ou de milícias é uma realidade para mais de 23 milhões de brasileiros – para os quais o Estado é ilusão

O processo democrático reserva às eleições o momento soberano de escolha dos cidadãos, elevando a proximidade do povo com seus representantes políticos, e exibindo a satisfação ou insatisfação coletiva com os governantes e parlamentares. Assim também será daqui a um mês, quando prefeitos e vereadores definidos pelo voto, ou indicados ao segundo turno, receberem a confiança da população para exercerem o poder de melhorar a vida de todos. Mas para isso, o poder local precisa ter acesso às comunidades – o que não é fácil, ou mesmo possível, em parte do país. Porque o crime organizado desorganizou a ordem institucionalizada, impondo domínios fora da lei em largas porções do território nacional, gerando fronteiras de exclusão, sofrimento e medo.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública informa que nada menos que 23,5 milhões de brasileiros com mais de 16 anos moram em áreas com a presença de facções ou milícias. O volume populacional é maior, portanto, se fossem incluídas as crianças e adolescentes até essa idade. O levantamento resulta de dados do Instituto Datafolha, e diz ainda que 10 milhões de pessoas tiveram um parente ou conhecido desaparecido nos últimos doze meses. E que 14 milhões sabem da existência de cemitérios clandestinos nas cidades em que moram. Para esses cidadãos, a imagem do poder público é certamente menor do que poderia ser, caso não estivesse maculada pela brutalidade do crime e pela ordem da violência.
Para Renato Sérgio de Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o impacto do crime organizado no cotidiano dessas populações, em especial, dos jovens de até 24 anos, é evidente. Podemos acrescentar: é brutal e covarde, restringindo o presente e encobrindo o futuro do horizonte da juventude. “O Estado brasileiro está diante de um imenso desafio, que passa pela retomada do controle sobre territórios, a identificação do caminho percorrido pelo dinheiro desses grupos nacionais e transnacionais e também pelo controle de produtos do crime a partir do rastreamento de mercadorias utilizadas para lavagem de recursos", afirmou, lembrando que o PCC e o Comando Vermelho invadiram cidades no interior do país, que se transformaram em pontos estratégicos para a distribuição de drogas e outras ilegalidades.
Vê-se como os prefeitos e vereadores que assumem mandatos em 2025 têm uma agenda inescapável a cumprir, no enfrentamento do problema, junto com governos estaduais e o governo federal. Como se repete há algum tempo, apenas a articulação de diferentes atores governamentais e da segurança pública poderá reduzir o alcance das facções e milícias no país. O governo federal anunciou que pretende iniciar pela Nordeste um projeto-piloto para a recuperação de territórios nas mãos do crime organizado. Mas não há prazo para o plano ganhar o chão do real. Os novos prefeitos e prefeitas, bem como parlamentares municipais nordestinos, podem começar seus mandatos, em janeiro, cobrando do Planalto as ações com tal propósito. Em nome de uma vasta porção do território que parece fora do Brasil, num país sem governo, nem ordem ou destino.