Responsabilidade em dobro
Retirada dos instrumentos de checagem dos fatos pelas redes sociais aumenta a importância do papel da imprensa para a informação pública
Um dos primeiros impactos da volta de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos caiu como uma bomba no ambiente virtual dominado por magnatas da tecnologia da comunicação. A Meta, empresa dona do Whatsapp, do Instagram e do Facebook, anunciou que está deixando de utilizar instrumentos de checagem dos fatos, cruciais para barrar avalanches de fake news. As notícias falsas produzidas escancaradamente ou na surdina, e compartilhadas por milhares ou mesmo milhões de usuários das redes sociais, agora terão a porteira aberta para alcançar ainda mais gente. O modelo adotado daqui por diante será o do ex-Twitter, rebatizado de X pelo novo dono, que prefere receber mensagens isoladas a posteriori, em reação às postagens, ao invés de adotar medidas para validar a fonte de uma informação.
Na prática, o mundo digital pode ficar muito mais feio, degradado, mentiroso, delirante e depravado do que já é, com a retirada dos portões de fronteira para a origem e a veracidade do que se posta. Nada a ver com liberdade de expressão, como se alega com o cinismo complacente com quem mente. A primeira postagem do presidente eleito dos EUA, após o anúncio da Meta, foi uma irônica e descarada fake news, com a ilustração fantasiosa de um mapa do seu país incorporando o Canadá em seus domínios. Trump também provocou outra nação do continente, ao falar em “Golfo da América” em referência ao Golfo do México. Em resposta, a presidente do México, Claudia Scheinbaum, sugeriu que os EUA fossem nomeados de América Mexicana, em virtudes dos territórios do país que foram anexados pelos vizinhos.
Apenas para ficar nesse exemplo, as informações acerca das afirmações, verídicas ou supostas, de chefes de estado, envolvendo precedentes históricos e denominações reconhecidas por organismos internacionais, não passarão mais pelo crivo de checagem das grandes companhias de tecnologia da comunicação que gerem as principais redes sociais. Como resultado, a informação viciada e mal-intencionada poderá circular livremente nas telas, e ser compartilhada aos montes, a depender das claques do Golfo da América ou da América Mexicana.
O cenário distópico da realidade presente lembra o enredo de “1984” de George Orwell, obra literária na qual um Ministério da Verdade revisa a história, apagando a inserindo manchetes nos arquivos dos jornais e revistas, diariamente. É nesse cenário que cresce o papel da imprensa em todo o mundo, a partir da valorização do trabalho jornalístico de apuração e checagem dos fatos, e de publicação da verdade checada – e não, inventada. A responsabilidade dos jornalistas e dos veículos de comunicação que trazem consigo credibilidade e confiança é dobrada, numa época vulnerável à ameaça de contaminação da informação pública com o vírus totalitário da desinformação, da mentira, e do ocultamento do que não interessa aos donos – e vassalos – do poder.