POLÊMICA

Confusão com vereadores e deputados marca aborto legal de criança de dez anos no Recife

Políticos conservadores, a maioria ligada à igreja evangélica, tentaram impedir o procedimento autorizado pela Justiça

JC
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Publicado em 16/08/2020 às 19:00 | Atualizado em 17/08/2020 às 10:46
FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM
A Justiça capixaba autorizou na sexta-feira (14/8) o procedimento e a criança foi transferida para realizá-lo no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), no Recife - FOTO: FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM

Confusão, bate boca e total desrespeito às regras de distanciamento e isolamento social marcaram, neste domingo (16), o aborto legal de uma menina de dez anos que engravidou após ter sido estuprada pelo próprio tio.

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O caso aconteceu na cidade de São Mateus, no Norte do Espírito Santo, a 215 quilômetros de Vitória, capital do Estado. A Justiça capixaba autorizou o procedimento na sexta-feira (14/8) e a criança foi transferida para realizá-lo no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), no Recife.

Apesar de a legislação prever a interrupção da gravidez em caso de violência sexual, a jovem teria tido o atendimento negado na unidade de referência do Estado onde mora e, por isso, precisou vir a Pernambuco para realizar a interrupção da gravidez.

Uma verdadeira multidão se aglomerou em frente ao Cisam, localizado no bairro da Encruzilhada, Zona Norte da capital. De um lado, defensores do direito de a menina realizar o aborto pela pouca idade e pela violência sofrida. Do outro, um grupo comandado por vereadores e deputados da linha conservadora da política - muitos deles ligados à igreja evangélica, outros à católica -, totalmente contrários ao procedimento.

As manifestações contrárias ao aborto legal começaram comandadas pela deputada estadual Clarissa de Tércio (PSC). Ao lado dela, o vereador Renato Antunes (PSC) e o deputado estadual Joel da Harpa (PP). Na sequência, chegaram o deputado estadual Cleiton Collins e a vereadora Michelle Collins, ambos do PP. E, por último, a ex-deputada Terezinha Nunes (MDB). Em defesa do procedimento da garota, Carol Virgolino, codeputada do Juntas, acompanhada de representantes de entidades de defesa da mulher.

"É inconcebível que a gente tenha fundamentalistas, pessoas de igrejas, neste momento ocupando a frente de uma maternidade, durante uma pandemia, para impedir que uma menina de 10 anos estuprada desde os seis faça um aborto legal", argumentou Elisa Aníbal, integrante da Frente Nacional Contra Criminalização das Mulheres. Ela, que também é advogada, destacou os motivos pelos quais o procedimento está em conformidade com a lei. "O aborto em caso de estupro já é garantido por lei. Se a menina é menor de 14 anos, isso ainda significa estupro de vulnerável. O corpo de uma pessoa de 10 anos não suporta uma gestação, coloca a vida da criança em risco. Forçar uma menina de 10 anos, vítima de estupro, a gestar até os nove meses é uma tortura", completou.

Líder do movimento Pró-vida Pernambuco, Victor Borba afirmou que as entidades cobravam a defesa de ambas as vidas. "Queríamos conscientizar o médico responsável por matar a criança que a outra criança estava carregando, para que ele pudesse considerar salvar as duas vidas. Questionamos também por que trazer a criança do Espírito Santo para o Recife. Lá se recusaram a assassinar o bebê. Não se resolve um crime cometendo outro", afirmou. Borba defendeu a ilegalidade do procedimento, apesar da liminar concedida à criança na última sexta-feira (14), autorizando o procedimento. "É uma decisão de primeira instância do Estado do Espírito Santo. Nós estamos em Pernambuco. Queremos que a Justiça daqui se pronuncie e não que seja feito assim, de uma hora para outra, na calada da noite, de um sábado para domingo", defendeu. 

A menina chegou ao Cisam por volta das 16h. Cerca de uma hora depois, o óbito fetal já havia sido induzido, através de medicamentos. Segundo o médico Olímpio Barbosa, diretor da unidade de saúde, o processo de expulsão do feto leva de 12h a 24h. O diretor do Cisam disse que foi contactado após a decisão da Justiça. "Recebi uma ligação solicitando ajuda. Me passaram a decisão da Justiça e eu já tinha acompanhado o caso através da imprensa. O que fizemos é o que consta na Lei, que garante o abortamento em caso de estupro. Eu considero, no caso de uma criança de 10 anos que não deseja a gravidez, um ato de tortura." O médico ainda destacou que a menina corria risco de vida, caso a gravidez fosse mantida. "Não é algo natural. Se trata de um organismo que não está formado. Há risco de hemorragia, parto prematuro, hipertensão algumas centenas de vezes mais alto do que em uma mulher adulta. O mais importante é preservar a vida dessa criança", argumentou. 

As despesas foram custeadas pelo governo do Espírito Santo. Após o procedimento, a menina deverá retornar ao seu Estado de origem, para que possa ser acompanhada.  

Em nota, a Secretaria de Saúde de Pernambuco (SES) informou que segue a legislação vigente em relação à interrupção da gravidez (quando não há outro meio de salvar a vida da mulher, quando é resultado de estupro e nos diagnósticos de anencefalia), além dos protocolos do Ministério da Saúde (MS) para a realização do procedimento, oferecendo à vítima assistência emergencial, integral e multidisciplinar.

"Em relação ao caso citado, é importante ressaltar, ainda, que há autorização judicial do Espírito Santo ratificando a interrupção da gestação. É importante reforçar, também, que o Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam-UPE) é referência estadual nesse tipo de procedimento e de acolhimento às vítimas. Por fim, ratifica-se que todos os parâmetros legais estão sendo rigidamente seguidos", diz o comunicado. 

 

JÔNATAS CAMPOS/ESPECIAL PARA O JC
Uma verdadeira multidão se aglomerou em frente ao Cisam. De um lado, defensores do direito de a menina realizar o aborto pela pouca idade e pela violência sofrida. Do outro, um grupo comandado por vereadores e deputados da linha conservadora da política, muitos deles ligados à religião evangélica. - JÔNATAS CAMPOS/ESPECIAL PARA O JC

ENTENDA O CASO

A autorização para o aborto legal da garota de dez anos foi dada pelo juiz da Vara da Infância e da Juventude da cidade de São Mateus, Antonio Moreira Fernandes. No despacho, o magistrado determina que a criança seja submetida ao procedimento de melhor viabilidade e o mais rápido possível para preservar a vida dela. É usada a expressão "imediata".

O caso foi descoberto quando a menina deu entrada no dia 8 de agosto no Hospital Estadual Roberto Silvares, em São Mateus, com sinais de gravidez. A garota estava se sentindo mal e a equipe médica desconfiou da barriga "crescida" da menina. Ao realizar exames, os enfermeiros descobriram que ela estava grávida de três meses. Em conversa com médicos e com a tia, a criança confidenciou que o tio a estuprava desde os seis anos e que nunca contou aos familiares porque era ameaçada. O homem fugiu depois que a gravidez foi descoberta.

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